06/03/05

MAIS BERNARDIM - o da Menina e Moça ou Livro das Saudades


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A MORTE DO ROUXINOL


-de Menina e Moça ou Livro das Saudades -de Bernardim Ribeiro

[.....]Começava então de querer cair a calma
[1] e no cami­nho, com a pressa que eu levava por fugir a ela, ou pola desaventura que me levava, três ou quatro vezes caí, mas eu, que depois de triste cuidei que não tinha mais que temer, não olhei nada[2] por aquilo em que parece que Deus me queria avisar da mudança que depois havia de vir. Chegando à borda, olhei pera onde via maiores sombras e pareceram‑me as que estavam além do rio. Disse eu então entre mim que naquilo se enxergava que era mais desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver, porque não se podia ir além sem se passar a ágoa que corria ali mais mansa e mais alta que noutra parte. Mas eu, que sempre folguei de buscar meu dano passei além e fui‑me assentar de sob a espessa sombra de um verde freixo que para baixo um pouco estava e algúas das ramas estendia por cima da ágoa que ali fazia tama­lavez[3] de corrente e, empedida de um penedo que no meo dela estava, se partia para um e outro cabo, murmurando. Eu que os olhos levava ali postos, comecei a cuidar como nas cousas que não tinham entendimento havia também fazerem‑se úas às outras nojo, e estava ali aprendendo tomar algum conforto no meu mal, que assi aquele penedo estava ali anojando aquela ágoa que queria ir seu caminho, como as minhas desaventuras noutro tempo soíam fazer a tudo o que mais queria, que agora já não quero nada. E crecia‑me daquilo um pesar, porque a cabo do penedo tornava a ágoa a juntar‑se e ir seu caminho sem estrondo algum, mas antes parecia que corria ali mais depressa que pela outra parte, e dizia eu que seria aquilo por se apartar mais asinha daquele penedo, imigo de seu curso natural que, como por força, ali estava.

Não tardou muito que, estando eu assi cuidando, sobre um verde ramo que por cima da ágoa se estendia se veo apousentar
[4] um roussinol, e começou tão docemente cantar que de todo me levou após si o meu sentido de ouvir. E ele cada vez crecia mais em seus queixumes, cada hora parecia que como cansado queria acabar, senão quando tornava como que começava então. A triste da avezinha que, estando‑se assi queixando, não sei como, caio morta sobre a ágoa, e caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram também com ela! pareçeo aquilo sinal de pesar àquele arvoredo seu caso tão desestrado. Levava‑a após si a ágoa e as folhas após ela. Quisera‑a eu tomar, mas por a corrente que ali fazia grande, e por o mato que dali para baixo acerca do rio logo estava, prestesmente se me alongou da vista. Mas o coração me doeu tanto então em ver tão asinha[5] morto quem antes, tão pouco havia, que vira estar cantando, que não pude ter as lágrimas.
Certo que por cousa deste mundo, depois que eu perdi outra cousa, não me pareceo a mim que chorasse assi de vontade. Mas em parte este meu cuidado não foi em vão porque, ainda que por a desaventura daquela avezinha fossem causadas minhas lágrimas, lá ao sair delas foram juntas outras minhas lembranças tristes. Grande pedaço de tempo estive assi, embargados meus olhos antre os cuidados que muito tempo havia que me tinham já então, e inda terão, té quando venha o tempo que algúa pessoa estranha, de dó de mim, com as suas mãos cerre estes meus olhos que nunca foram fartos de me mostrarem mágoas.[.....]

Pequeno Glossário:
[1] calor ;[2] não prestei atenção[3] um pouco, algum tanto ;[4] pousar ;[5] depressa


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