13/09/05

O PRAZER DE LER - 27


livraria Lello-Porto-interior


Lugares mágicos

Entro numa livraria como quem entra num santuário, onde o direito de asilo nos é sempre garantido. Nas cidades que não conheço, é sempre o primeiro lugar que procuro e nunca resisto a entrar quando ela se atravessa no meu caminho. As livrarias fazem parte da minha família. São amigas de infância. É nelas que marco encontros com amigos, é passando a mão pelas capas dos seus livros que desfaço neuras e procuro energias.
Claro que há as minhas livrarias de eleição, aquelas a que, por qualquer motivo,me habituei como ao café da manhã ou o jornal comprado no quiosque de sempre: durante anos e anos a Quadrante foi a minha segunda casa, uma espécie de "baby-sitter" para os meus filhos pequenos, que lá deixava rodeados de livros e vigiados pela Nini, uma cadela com quem compartilhavam festas e lambidelas nos chupa-chupas, até que um dia a Quadrante fechou e, até hoje, nada lá conseguiu vingar.
Já foi casa de pronto-a-vestir, já foi loja de móveis, já foi galeria de arte, neste momento alberga a redacção de uma revista de saúde à qual, evidentemente, desejo muita sorte e que consiga vencer a maldição...E há ainda as livrarias mágicas, aquelas sem as quais os lugares, para mim, perdiam muito da sua razão de ser: ir ao Porto sem ter tempo para ir à Lello, não vale a pena; ir a Londres sem ter horas disponíveis para a Waterstone, é um desperdício.
E depois há aquelas velhíssimas lojas, que são livrarias, mas também vendem revistas de bordados e croché, calendários e postais ilustrados e muitos livros de edição de autor que acumulam pó porque já ali estão há que anos, com um cheiro a papel que se esfarela nos dedos e nos traz à lembrança os livros de histórias que líamos na infância, com meninos "órphãos" que se perdiam nas florestas.
Numa dessas velhas livrarias de bairro entrei há dias, exactamente porque na montra deparei com um livro, decerto tão velho como a livraria, de que tinha gostado muito em criança e de que há muito perdera o rasto.
O dono da loja (e também tão velho como ela) passou tormentos para descobrir o preço do livro, abriu gavetas, fechou gavetas, coçou a cabeça, virou e revirou o livro, até que, não sei por que estranhos cálculos, me propôs: "Trezentos escudos, acha que está bem?". Nem hesitei, e já ia a sair com o meu tesouro debaixo do braço quando entra uma jovem, de ar aborrecido, que coloca um livro em cima do balcão e diz: "Venho trocar este livro, que está estragado". O homem olha o livro e não entende, não tem páginas trocadas, não tem páginas rasgadas, não tem manchas em lado nenhum, mas ela insiste: "Não vê que está estragado?". Como o homem continuasse a não perceber, ela abre o livro e enfia os dedos pelas páginas: "Está a ver? As folhas estão todas juntas, assim não se consegue ler!".
Como o homem, coitado, continuasse a não perceber, antes de sair da livraria fiz a minha boa acção do dia e expliquei à jovem que, dantes, era assim que todos os livros se publicavam, e que bastava ela pegar numa faquinha e abrir, e logo podia ler o livro à vontade, e que até havia faquinhas de propósito para isso, para abrir os livros. Ela encolheu os ombros: "Cá para mim é um livro estragado, mas pronto", e lá se foi à vida. O velhote, esse, nunca chegou a perceber de que é que ela se queixava.

Alice Vieira

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