30/11/05

AINDA DO «MENINO DA SUA MÃE»



O véu das lágrimas não cega.

Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega —
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui.
O horror do tempo, porque flui,
O horror da vida, porque é só matar!
Vejo e adormeço,
Num torpor em que me esqueço
Que existo inda neste mundo que há...
Estou vendo minha mãe tocar.
E essas mãos brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará —
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
(Meu Deus!)

Un soir à Lima

Ah ! Vejo tudo claro !
Estou outra vez ali.
Afasto do luar externo e raro
Os olhos com que o vi.

Mas quê? Divago e a música acabou...
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei

Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter o trono.

Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada,
E a cabeça que sonha contra o muro.

Mas, mãe, não haverá
Um deus que me não torne tudo vão,
(ou )Um outro mundo em que isso não está?
Divago ainda: tudo é ilusão.

Un soir à Lima

Quebra-te, coração …

[Poema escrito em 17 de Set. de 1935], por

Fernando Pessoa, «o menino de sua mãe»

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