30/11/05

FERNANDO PESSOA, O ÍBIS




[nos 70 anos que assinalam a sua imortalidade]

Você merece mesmo que estejamos aqui reunidos, hem, você, fernando, você, alberto, você, álvaro, você, ricardo,você bernardo,você barão de teive,você vicente guedes, você, antónio mora, você tantos outros (72 apenas? ); você que se quis ser o supra-Camões e toda uma literatura; você argonauta das sensações verdadeiras; você para quem navegar(foi preciso,viver não(foi) preciso; você que se quis poeta fingi(e)dor de dores que deveras sentiu; você, coração de ninguém; você que continua a ser indisciplinador de almas e a indisciplinar as nossas; você seguindo o fumo do seu cigarro como uma rota própria; você , recordando, comovido, as tias velhas «do tempo em que festejavam o dia de seus anos e era feliz», - e os romances de sua infância, a Nau Catrineta, a Bela Infanta, nos intervalos do vozeirão épico de J.Burns; você de alma estática, sentada, vendo os navios que partem do cais, essa «saudade de pedra»,você do Magnificat, você recordando, de coração quebrado, pouco antes do seu virar a curva da estrada, de deixar de ser visto, a doçura de sua mãe tocando Un soir à Lima, você que disse não ser nada, nunca vir a ser nada, não poder querer vir a ser nada - e contudo ter em si todos os sonhos do mundo, repartindo connosco sua condição de escravo cardíaco das estrelas, e, como o Marinheiro do seu drama, sonhando pátrias de sonho e não se reconhecendo na verdadeira; você que nos reúne, através neste espaço que é também seu e do seu mestre Pessanha, rodeando-nos e agradecendo-lhe ter existido e existir ainda!

Perdoe se escrevo esta mensagem neste dia em que se tornou parte do universo estelar e Infinito e partiu para a sua Pasárgada,onde encontrou, entre tantos bem-aventurados, o seu amigo Manuel Bandeira; quero que você a leia bem cedinho, ao acordar, com a Criança Eterna dentro de si, a tal que brincava com seus sonhos, lembra? - connosco afagando seu cabelo, dando-lhe o colo consolador que definitivamente o faça reentrar, ainda que por breves momentos de ilusão, (E eu era feliz?Não sei.Fui-o outrora agora -como escreveu) na sua infância, envolto na música embaladora e nos braços de sua mãe, de quem foi o menino, e de sua ama velha que o trouxe ao colo - também de sua Bébézinha querida, a doce Ophelinha de suas cartas de amor «ridículas» (deixe lá -o Álvaro tinha era ciúmes de Ophelia...). E deixe a Daisy lá longe, e também aquele pobre rapazito que lhe deu tantas horas tão felizes em Iorque- e certamente a estranha Cecily que acreditava que você seria grande...e não é que foi mesmo?...

Está aqui, entre seus amigos , neste barco de flores, amigos que tantas alegrias lhe devem e lhe querem muito bem -. agradecendo-lhe por ter existido e se ter outrado, múltiplo e plural como o universo! Como presente de gratidão, trazemos-lhe de volta o seu amigo Mário,o de quem disse, emocionado,ter morrido jovem, porque morrem jovens os que os deuses amam, - conversando consigo na sua mesa da Brasileira ou no café Martinho, "[ele, Mário, que o fez depositário de seus versos, e que lhe escrevia em Quase]:

«Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além,
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...»

Amélia Pais



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