27/12/05

DESASSOSSEGOS - 22



E agora, José

Está sem mulher,
está sem discurso.
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou
e agora, José?

E agora, José?
sua doce palavra
seu instante de febre,
sua gula e jejum
sua biblioteca,
seu terno de vidro
sua incoerência
seu ódio – e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou,
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse
se você gemesse
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José


Sózinho no escuro
qual bicho do mato,
sem teogonia,
sem parede nua,
pra se enroscar,
seu cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José?
José, para onde?



Carlos Drummond de Andrade

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