31/03/05

DO FALAR POESIA - 18

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POETRY

it
takes
a lot of

desperation

dissatisfaction

and
disillusion

to
write


a
few
good
poems.

it´s not
for
everybody

either
to
write it

or even to
read
it.

Charles Bukowski
encontrado in http://noctivago.blogspot.com/; foto de michael kenna


POESIA

exi
ge
muito

desespero

insatisfação

e
desilusão


escre
ver

alguns
bons
poemas.

não é
para toda
a gente

escrevê-
la


ou mesmo
lê-
la


[ Trad. 'caseira' de Amélia Pais]

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30/03/05

OMNIA VINCIT AMOR - 7

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ARDER

O amor pode ser uma coisa fatal.
Nunca imaginei o amor como lugar paradisíaco.
Mas vale mais durar ou arder?
Vale mais arder: aí estou com Shelley.

Murillo Mendes

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29/03/05

DIA MUNDIAL DO TEATRO

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Ainda que com dois dias de atraso sobre o Dia Mundial do Teatro, aqui vai o reconhecimento pela arte, na celebração de uma grande actriz brasileira - Cacilda Becker - por Carlos Drummond de Andrade :

Atriz

A morte emendou a gramática.
Morreram Cacilda Becker.
Não era uma só.Era tantas.
Professorinha pobre de Piraçununga
Cleópatra e Antígona
Maria Stuart
Mary Tyrone
Marta de Albee
Margarida Gauthier e Alma Winemiller
Hannah Jelkes a solteirona
a velha senhora Clara Zahanassian
adorável Júlia
outras muitas, modernas e futuras
irreveladas.
Era também um garoto descarinhado e astuto:
Pinga-Fogo
e um mendigo esperando infinitamente Godot.
Era principalmente a voz de martelo sensível
martelando e doendo e descascando
a casca podre da vida
para mostrar o miolo de sombra
a verdade de cada um nos mitos cênicos.
Era uma pessoa e era um teatro.
Morrem mil Cacildas em Cacilda.





ESCREVER - 1

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O Que é Escrever ?

Escrever é isto: comover para desconvocar a angústia e aligeirar o medo, que é sempre experimentado nos povos como uma infusão de laboratório, cada vez mais sofisticada. Eu penso que o escritor com maior sucesso (não de livraria, mas de indignação social profunda) é aquele que protege os homens do medo: por audácia, delírio, fantasia, piedade ou desfiguração. Mas porque a poética precisão dum acto humano não corresponde totalmente à sua evidência. Ama-se a palavra, usa-se a escrita, despertam-se as coisas do silêncio em que foram criadas. Depois de tudo, escrever é um pouco corrigir a fortuna, que é cega, com um júbilo da Natureza, que é precavida.

Agustina Bessa-Luís, in "Contemplação Carinhosa da Angústia"

achado em Citador - http://citador.weblog.com.pt/

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28/03/05

DE AMICITIA - 6

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[……]

Qual, então, o meu objectivo ao fazer um amigo? O de ter alguém por quem possa morrer, a quem possa seguir no seu exílio, a quem possa proteger com a minha pessoa, a cuja salvação possa devotar os meus dias.
[……]

Séneca, in O Sábio e a Amizade

Encontrado em citador -http://citador.weblog.com.pt/

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27/03/05

OS MEUS POETAS - 19

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PÁSCOA


A senhora tia alisa a toalha
põe sobre ela talheres muito antigos
herdados dos avós que a terra come


quantos anos passados deste dia ainda estaremos

como agora juntos na cozinha de Sangalhos
entre o fumo da lenha seca
e o cheiro misturado
das carnes e das hortaliças
que acabam de ferver no fogo esperto


minha mãe diz um dito qualquer seca a vista

embaciada
eu venho do pátio
certamente cantando


o tio - as urinas presas
no laço da bexiga ­
conta uma história
da guerra de 14
do vizinho morto jovem como

ele Manuel sorte infeliz

ao tempo que isto foi



FERNANDO ASSIS PACHECO (1937-1995) , in Respiração Assistida

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26/03/05

UM POEMA DE QUE GOSTO


[Ao colocar aqui a entrada de ontem, lembrei-me deste poema, também sobre meninos e papagaios de papel - aqui designados de «estrelas» ]



Image hosted by Photobucket.com BRINQUEDO

Foi um sonho que eu tive:

Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe.


O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão;
E a estrela ia subindo, azul e amarela,
Presa pelo cordel à sua mão.


Mas tão alto subiu
Que deixou de ser estrela de papel.
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.

Miguel Torga

25/03/05

COISAS MINHAS - 12

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O MENINO E O PAPAGAIO DE PAPEL


Era uma vez um menino que gostava muito de aventuras.

Um dia, com uma guita, canas e uma folha de jornal, fez um papagaio de papel...

Viu que o papagaio era muito bonito e então apeteceu-lhe voar nele.

Subiu com muito cuidado e pés de lã lá para dentro e soprou com toda a força que tinha.

O papagaio, que ainda não sabia falar, fez um barulhinho muito esquisito com o bico. Devia estar a conversar lá com as suas penas... Mas lá decidiu levantar voo.

O menino ia muito agarradinho ao pescoço do papagaio para não cair.

Lá de cima via muitas coisas bonitas que nunca tinha visto senão na sua imaginação.

Via os telhados das casas com andorinhas poisadas nos beirais.

Via as pessoas com uma cabeça muito grande e parecendo pequeninas, como se não tivessem pés.

Via as árvores que baloiçavam quando o vento passava por elas e lhes cantava uma bela canção.

Algumas árvores mais pequeninas e com muitas luzinhas eram árvores de Natal.

Via as nuvens e chegou mesmo a entrar dentro de uma delas.

Como eram fôfinhas as nuvens! Lá dentro luziam pequeninas gotas de água que se riam para o menino.

Mas o menino já estava a ficar cansadinho e adormeceu.

O papagaio pensou então que seria bom ir des - cen - do,- des - cen - do, des- cen - do


muito de- va – ga – ri – i – i - i - nho,

para o menino não acordar...

E assim foi a história de um menino que gostava muito de aventuras e fez um papagaio de papel...


Amélia Pais


Obs: tentei, sem ter conseguido, formatar descendentemente a parte «que seria bom ir des-cen-do- des-cen-do».Peço, então, que imaginem como ficaria...Assim como assim, e como se dizia no Maio de 68, A IMAGINAÇÃO AO PODER!

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OMNIA VINCIT AMOR - 6

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Conta-me outra vez

Conta-me outra vez, é tão bonita
que não me canso nunca de a ouvir.
Repete-me de novo, os dois da história
foram felizes até à morte,
ela não foi infiel, ele nem
se lembrou de a enganar. E não te esqueças,
apesar do tempo e dos problemas,
continuavam a beijar-se cada noite.
Conta-me mil vezes, por favor:
é a história mais linda que conheço.


Amalia Bautista
incluído em Qual é a minha ou a Tua Língua?- Cem Poemas de Amor de Outras Línguas - trad. de Jorge Sousa Braga

foto: le baiser de l'Hôtel de Ville (Robert Doisneau)

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24/03/05

DO FALAR POESIA - 17

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coisa de poeta


eu nunca brinco
com palavras em poesia elas são
sempre exatas

todo poeta é um
deus escreve exatos
os sentimentos mais tortos

Adair Carvalhais Júnior - de Roteiros para um final de era

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23/03/05

O PRAZER DE LER - 12

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«O livro é aquele brinquedo, por incrível que pareça,
Que, entre um mistério e um segredo,
Põe ideias na cabeça.»

Maria Dinorah

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22/03/05

OS MEUS POETAS - 18

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CÂNTICO DAS CRIATURAS

Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
a Ti a glória, as honras, o louvor,e todas as bênçãos.
A Ti só, Altíssimo, sejam dadas
e homem nenhum é digno de nomear-Te.

Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas,
especialmente o senhor* irmão Sol
que só por si madruga e que nos ilumina.
E ele é belo e radiante e com grão esplendor,
e de Ti, Altíssimo, ele é testemunha.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e as estrelas
que no céu criaste claras e preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento,
e pelos ares sombrios ou serenos ou com todo o tempo
que são das criaturas mantimento.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água
que é tão útil e é humilde e preciosa e casta.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo
pelo qual de luzes se abre a noite
e é belo e alegre e é robusto e forte.

Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa madre terra
que nos sustenta e governa
e produz tantas frutas, coloridas flores e as ervas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelos que por teu amor perdoam
e suportam enfermidades e tribulações,
benditos aqueles que tudo suportam em paz
e que, por Ti, Altíssimo, serão coroados.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã a nossa morte corporal
da qual homem vivente algum há-de escapar,
ai daqueles que morrem em pecado mortal,
e benditos os que se encontram na Tua santíssima vontade
que a morte segunda não lhes fará mal.

Louvade e bendizede o meu Senhor, e graças dade,
servide-O todos com mui grã humildade.

S. Francisco de Assis
- tradução de Jorge de Sena in Poesia de 26 séculos -* adaptada: substituí no 6ºverso a trad. de messor por mestre, de Sena, por « senhor», que me parece mais aceitável.

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21/03/05

PENSAR - 12

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«A imaginação é mais importante que o conhecimento, pois este é limitado, enquanto a imaginação abraça todo o mundo, estimulando o progresso, originando a evolução ».

Albert Einstein (1929)
[No Ano Mundial da Física - comemorando o centenário da Teoria da Relatividade]

DO FALAR POESIA - 16

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[No Dia Internacional da Poesia]



LA POESIA ES NO ESTAR SENTADO


La poesia es no estar sentado
es no querer morirse, apasionadamente,
es entrar en el alba a cuerpo limpio en las ondas del día,
es no dormir y ser el alba antes del alba


Rafael Alberti - Versos Sueltos de cada Dia, 1979-1982

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20/03/05

PORQUE É PRIMAVERA...

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Au printemps


Au printemps au printemps

Et mon cœur et ton cœur
Sont repeints au vin blanc
Au printemps au printemps
Les amants vont prier
Notre-Dame du bon temps

Au printemps
Pour une fleur un sourire un serment
Pour l'ombre d'un regard en riant
Toutes les filles
Vous donneront leurs baisers
Puis tous leurs espoirs

Vois tous ces cœurs
Comme des artichauts
Qui s'effeuillent en battant
Pour s'offrir aux badauds
Vois tous ces cœurs
Comme de gentils mégots
Qui s'enflamment en riant
Pour les filles du métro

Au printemps au printemps
Et mon cœur et ton cœur
Sont repeints au vin blanc
Au printemps au printemps
Les amants vont prier
Notre-Dame du bon temps

Au printemps
Pour une fleur un sourire un serment
Pour l'ombre d'un regard en riant
Tout Paris
Se changera en baisers
Parfois même en grand soir

Vois tout Paris
Se change en pâturage
Pour troupeaux d'amoureux
Aux bergères peu sages
Vois tout Paris
Joue la fête au village
Pour bénir au soleil
Ces nouveaux mariages

Au printemps au printemps
Et mon cœur et ton cœur
Sont repeints au vin blanc
Au printemps au printemps
Les amants vont prier
Notre-Dame du bon temps

Au printemps
Pour une fleur un sourire un serment
Pour l'ombre d'un regard en riant
Toute la Terre
Se changera en baisers
Qui parleront d'espoir
Vois ce miracle
Car c'est bien le dernier
Qui s'offre encore à nous
Sans avoir à l'appeler
Vois ce miracle
Qui devait arriver
C'est la première chance
La seule de l'année

Au printemps au printemps
Et mon cœur et ton cœur
Sont repeints au vin blanc
Au printemps au printemps
Les amants vont prier
Notre-Dame du bon temps

Au printemps
Au printemps
Au printemps

Jacques Brel

DE AMICITIA - 5

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Longe


Amigo, estás longe.E a tua vida
está envolta em cores que eu não vejo.
E a minha vida está envolta em cores
que eu não vejo.


Sandro Penna

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19/03/05

NO DIA DOS PAIS


Para os meus visitantes que têm o privilégio de ser pais...

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Poema Enjoadinho


Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampoo
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

Vinícius de Moraes

OMNIA VINCIT AMOR - 5

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Valsinha

Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, para seu grande espanto convidou-a pra rodar…
Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a s’abraçar
E aí dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos
Como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz.

Vinícius de Morais
Obs.: - este poema viria a ser cantado por Chico Buarque.

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18/03/05

COISAS MINHAS -11

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Como a areia
a inconsistência
desliza
nos meus dedos

Assim
o sonho se esvai
- alado-
no meu peito

Amélia Pais



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PENSAR 11 / 2

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DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA DOS HOMENS *
Etienne de La Boétie (1530-1563)
Excertos

[……..]

Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres.

[……..]


A verdade é que o tirano nunca é amado nem ama.

A amizade é uma palavra sagrada, é uma coisa santa e só pode existir entre pessoas de bem, só se mantém quando há estima mútua; conserva-se não tanto pelos benefícios quanto por uma vida de bondade.
O que dá ao amigo a certeza de contar com o amigo é o conhecimento que tem da sua integridade, a forma como corresponde à sua amizade, o seu bom feitio, a fé e a constância.

Não cabe amizade onde há crueldade, onde há deslealdade, onde há injustiça. Quando os maus se reúnem, fazem-no para conspirar, não para travarem amizade. Apóiam-se uns aos outros, mas temem-se reciprocamente. Não são amigos, são cúmplices.

Ainda que assim não fosse, havia de ser sempre difícil achar num tirano um amor firme. É que, estando ele acima de todos e não tendo companheiros, situa-se para lá de todas as raias da amizade, a qual tem seu alvo na equidade, não aceita a superioridade, antes quer que todos sejam iguais.

[……..]
* o texto completo do Discurso pode ser lido, entre outros locais, em livro editado pela ed.Antígona, Lisboa - ou, como já foi dito, em http://www.geocities.com/Athens/Column/8413/servidao.html

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17/03/05

PENSAR - 11 /1

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Inicio hoje a publicação de alguns excertos do Discurso sobre a Servidão Voluntária dos Homens, de Etienne de la Boétie - já aqui referido em DE AMICITIA - 4

DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA DOS HOMENS *

por Etienne de La Boétie (1530-1563)



[……..]

No momento, gostaria apenas que me fizessem compreender como é possível que tantos homens, tantas cidades, tantas nações às vezes suportem tudo de um Tirano só, que tem apenas o poderia que lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto aceitam suportá-lo, e que não poderia fazer-lhes mal algum se não preferissem, a contradize-lo, suportar tudo dele.
[……..]
Tal entretanto é a fraqueza dos homens! Forçados à obediência, forçados a contemporizar, divididos entre si, nem sempre podem ser os mais fortes. Portanto, se uma nação, escravizada pela força das armas, é submetida ao poder de um só (como foi a cidade de Atenas à dominação dos trinta tiranos), não é de se espantar que ela sirva, mas de se deplorar sua servidão, ou melhor, nem espantar-se nem lamentar-se: suportar o infortúnio com resignação e reservar-se para uma ocasião melhor no futuro.

[……..]

Em primeiro lugar creio não haver dúvida de que, se vivêssemos com que os direitos que recebemos da natureza e segundo os preceitos que ela ensina, seríamos naturalmente submissos a nossos pais, súditos da razão, mas escravos de ninguém. Quanto a saber se em nós a razão é inata ou não (questão debatida a fundo nas academias e longamente agitada nas escolas de filósofos), penso não errar, ao acreditar que em nossa alma existe um germe de razão que, reanimado pelos bons conselhos e bons exemplo, produz em nós a virtude: ao contrário, esse mesmo germe aborta abafado pelos vícios que muitas vezes advém.

[……..]

Numa só coisa, estranhamente, a natureza se recusa a dar aos homens um desejo forte. Trata-se da liberdade, um bem tão grande e tão aprazível que, perdida ela, não há mal que não sobrevenha e até os próprios bens que lhe sobrevivam perdem todo o seu gosto e sabor, corrompidos pela servidão.

A liberdade é a única coisa que os homens não desejam; e isso por nenhuma outra razão (julgo eu) senão a de que lhes basta desejá-la para a possuírem; como se recusassem conquistá-la por ela ser tão simples de obter.
[……..]
* o texto completo do Discurso pode ser lido, entre outros locais, em http://www.geocities.com/Athens/Column/8413/servidao.html
(continua)

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16/03/05

OS MEUS POETAS - 17

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Caranguejola

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!


Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
P'ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito p'ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre p'lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
P'lo menos era o sossego completo... História! Era a melhor
[das vidas

Se me doem os pés e não sei andar direito,
P'ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde.
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará
P'ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. C'o a breca! levem-me p'rá enfermaria -
Isto é: p'ra um quarto particular que o meu pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital - higiénico, todo branco, moderno

[e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores

[maneiras.
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.


Mário de Sá Carneiro

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15/03/05

DO FALAR POESIA - 15

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Penetra surdamente no reino das palavras


Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intacta.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.

Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.”

Carlos Drummond de Andrade

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OMNIA VINCIT AMOR -4

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Memória (ou do grito inútil)

"Fico nas redondezas por uns dias, Glória", disse Harry com suavidade. "Poderei trazer tudo o que tu peças.""Então traz-me o teu amor", gritou Glória. "Por que raio não me dás tu o teu amor?"

Charles Bukowski, in Dá-me o teu amor, ed. Hiena.

encontrado in modus vivendi-http://amata.weblog.com.pt/

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14/03/05

DE AMICITIA - 4

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«Je l’aimais, parce que c’était lui, parce que c’était moi».

-palavras de Montaigne em relação ao seu amigo Etienne de La Boétie, falecido jovem; La Boétie escreveu um magnífico Tratado sobre a Servidão Voluntária dos Homens, que recomendo vivamente.
Também Georges Brassens escreveu sobre a Amizade e faz, também, referência à amizade de Montaigne e La Boétie, na canção :

Les copains d'abord


Non, ce n'était pas le radeau

De la Méduse, ce bateau,
Qu'on se le dis' au fond des ports,
Dis' au fond des ports,Il naviguait en pèr' peinard
Sur la grand' mare des canards,
Et s'app'lait les Copains d'abord

Les Copains d'abord.

Ses fluctuat nec mergitur
C'était pas d'la litteratur',
N'en déplaise aux jeteurs de sort,
Aux jeteurs de sort,
Son capitaine et ses mat'lots
N'étaient pas des enfants d'salauds,
Mais des amis franco de port,
Des copains d'abord.

C'étaient pas des amis de lux',
Des petits Castor et Pollux,
Des gens de Sodome et Gomorrh',
Sodome et Gomorrh',
C'étaient pas des amis choisis
Par Montaigne et La Boeti',
Sur le ventre ils se tapaient fort,
Les copains d'abord.

C'étaient pas des anges non plus,
L'Évangile, ils l'avaient pas lu,
Mais ils s'aimaient tout's voil's dehors,
Tout's voil's dehors,
Jean, Pierre, Paul et compagnie,
C'était leur seule litanie
Leur Credo, leur Confiteor,
Aux copains d'abord.

Au moindre coup de Trafalgar,
C'est l'amitié qui prenait l'quart,
C'est elle qui leur montrait le nord,
Leur montrait le nord.
Et quand ils étaient en détresse,
Qu'leurs bras lancaient des S.O.S.,
On aurait dit les sémaphores,
Les copains d'abord.

Au rendez-vous des bons copains,
Y'avait pas souvent de lapins,
Quand l'un d'entre eux manquait a bord,
C'est qu'il était mort.
Oui, mais jamais, au grand jamais,
Son trou dans l'eau n'se refermait,
Cent ans après, coquin de sort !I
l manquait encor'.

Des bateaux j'en ai pris beaucoup,
Mais le seul qui ait tenu le coup,
Qui n'ai jamais viré de bord,
Mais viré de bord,
Naviguait en père peinard
Sur la grand' mare des canards,
Et s'app'lait les Copains d'abord
Les Copains d'abord.

Georges Brassens





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12/03/05

O PRAZER DE LER - 11

Image hosted by Photobucket.com "Os verdadeiros livros devem ser filhos, não da luz do dia e da conversa, mas da obscuridade e do silêncio"

Marcel Proust

«achado» no blogue a romã de vidro - http://romadevidro.blogspot.com/

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11/03/05

COISAS MINHAS -10

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Meu sol oriental comigo à beira-mágoa
sonho alado canção ave nocturna
cotovia sem voz erguida no espaço
(quase grito de espanto)
gaivota em mim mesmo já cansada
Amélia Pais

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PALAVRAS

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Há palavras que fazem bater mais depressa o coração

Almada Negreiros

10/03/05

DO FALAR POESIA - 14

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Haverá um tempo «da frol»?*
Qual a estação mais propícia à poesia? Para o poeta, para o verdadeiro poeta, não há outra estação senão a da poesia. E dentro da poesia a primavera, o verão, o outono, o inverno. A poesia vive muito para lá da palavra, independente das costuras da linguagem. Vive junto a uma espécie de «miopia» reveladora. Por isso, sabemo-lo, é a única estação dos poetas. Uma estação orgíaca, onde os sons copulam com as imagens e os ritmos se cruzam com as ideias e o ar torna-se respiração e todas as estações se transformam numa única divisão cosmogónica. A poesia dá forma às ideias. Ela também é, nessa medida, método. Arrasta na sua cauda os mitos mais primitivos, o legado órfico. Arrasta-os para a orla de uma verdade inquieta. Porque cumpre o espírito fora dos edifícios de uma falsa verdade, dessa verdade que se reclama científica, racional, clara e evidente, sólida. Dessa verdade dos ditames, das regras, dos asfixiantes pressupostos da epistemologia, nada servirá ao poeta. Já que a poesia celebra o Eu. O Eu obscuro que apenas a poesia desvela. Mas esse Eu não é tão-somente o ego do poeta. É raro encontrarmos hoje uma poesia que não coloque o poeta num estado de urgência expressiva, no centro de todas as atenções. Parece-me que, mais tarde ou mais cedo, dar-se-á também na arte poética uma nova «revolução coperniciana». O poema deixará de andar à volta do poeta para que o poeta passe a andar em torno do poema. Porque só a poesia sabe conjugar, de forma absolutamente livre, os confins da solidão do poeta com o veneno das ideias cartografadas, ou seja, a expressão com a reflexão. É essencial que a revolução aconteça.


Henrique Fialho (juraan vink) -In http://www.universosdesfeitos.weblog.com.pt/
[*título meu ; imagem de mucha - 'poesia' ]

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OS MEUS POETAS - 16



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As folhas da bananeira são suficientemente amplas
para ocultarem uma paixão.
Quando expostas às intempéries
recordam-me ora a cauda ferida duma fénix
ora um leque verde rasgado pelo vento.
A bananeira floresce.
Todavia as suas flores nada têm de atraente.
O mesmo acontece com o tronco enorme.
Talvez por isso
a bananeira acabou por conquistar o meu coração.
Sento-me debaixo dela
enquanto o vento e a chuva a fustigam.

matsuo bashô, poeta japonês(1644-1694)

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09/03/05

PENSAR - 10

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...com Fernando Pessoa:

"Todo este mundo quotidiano e visível, toda esta gente que bóia à superfície da vida, todas estas coisas que constituem os nomes e os feitos da história não são mais que erro e ilusão. Somos todos, não agentes, senão agidos - títeres de maiores que nós. Todo o nosso orgulho de conscientes e a nossa soberba de racionais são o títere que se orgulha de seus gestos. Na verdade o combate é aqui, mas não é nosso; não é connosco, somos nós. Não somos actores de um drama: somos o próprio drama - a antestreia, os gestos, os cenários. Nada se passa connosco: nós é que somos o que se passa"

Fernando Pessoa, in "Os Trezentos e Outros Ensaios"
encontrado in almocreve das petas - http://almocrevedaspetas.blogspot.com/

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08/03/05

OMNIA VINCIT AMOR -3

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Vivamos, minha Lésbia, e amemos,
e os murmúrios dos velhos mais severos
dêmos-lhes a todos o valor de um centavo!
Os sóis podem extinguir-se e voltar:
mas nós, uma vez que se extingue a breve luz do dia,
temos de dormir uma só noite, para sempre.
Dá-me mil beijos, depois um cento,
e mais mil, depois outro cento,
depois outros mil, e mais cem.
Em seguida, quando juntarmos muitos milhares,
misturamo-los, para que não saibamos
ou nenhum malvado possa invejar-nos,
quando souber que os beijos foram tantos.

Catulo

trad. de Maria Helena da Rocha Pereira, in Romana, Coimbra, 2000.


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8 de março -DIA INTERNACIONAL DA MULHER


Porque em muitas partes do mundo a mulher é ainda a vítima entre as vítimas, carregando sobre os seus ombros «a metade do céu» e «devendo conquistá-lo» * :
1.
No feminino

As mulheres são seres fantásticos. Em todos os sentidos que o termo possa encerrar. A elas pertence o poder de gerar vida, do seu sangue nascem cavalos alados, dão nome a furacões, tecem o tempo em fios de lã, matam e morrem por amor, vivem durante mais tempo e possuem um secreto poder de encantamento. As mulheres não precisam de um dia que as anuncie porque todos os dias lhes pertencem.

Margarida Antunes - in http://essencial-ou-acessorio.blogspot.com/

Image hosted by Photobucket.comcapela sistina: a criação do homem (Michelangelo)

2.
Gosto muito, é claro, desta displicente elegância do gesto de Adão ao ser criado, que, em tão expressivo contraste, recorta o veemente gesto divino. Mas, como Adão, só tenho olhos para aquela que chega no dorso de Deus, protegida no seu abraço. Assim Deus criou a mulher.


tomas in o companheiro secreto - http://www.ocompanheirosecreto.blogspot.com/

* Mao Tse Tung

07/03/05

DE AMICITIA -3

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Com um brilhozinho nos olhos

[………]

o que é que aconteceu, diz lá

é que hoje fiz um amigo
e coisa mais preciosa no mundo não há.
[……..]

E com um brilhozinho nos olhos

tentamos saber
para lá do que muito se amou
quem éramos nós
quem queríamos ser
e quais as esperanças
que a vida roubou
e olhei-o de longe
e mirei-o de perto
que quem não vê caras
não vê corações
com um brilhozinho nos olhos
guardei um amigo
que é coisa que vale milhões.

[………]



Sérgio Godinho (excertos da canção Com um brilhozinho nos olhos )

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06/03/05

MAIS BERNARDIM - o da Menina e Moça ou Livro das Saudades


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A MORTE DO ROUXINOL


-de Menina e Moça ou Livro das Saudades -de Bernardim Ribeiro

[.....]Começava então de querer cair a calma
[1] e no cami­nho, com a pressa que eu levava por fugir a ela, ou pola desaventura que me levava, três ou quatro vezes caí, mas eu, que depois de triste cuidei que não tinha mais que temer, não olhei nada[2] por aquilo em que parece que Deus me queria avisar da mudança que depois havia de vir. Chegando à borda, olhei pera onde via maiores sombras e pareceram‑me as que estavam além do rio. Disse eu então entre mim que naquilo se enxergava que era mais desejado tudo o que com mais trabalho se podia haver, porque não se podia ir além sem se passar a ágoa que corria ali mais mansa e mais alta que noutra parte. Mas eu, que sempre folguei de buscar meu dano passei além e fui‑me assentar de sob a espessa sombra de um verde freixo que para baixo um pouco estava e algúas das ramas estendia por cima da ágoa que ali fazia tama­lavez[3] de corrente e, empedida de um penedo que no meo dela estava, se partia para um e outro cabo, murmurando. Eu que os olhos levava ali postos, comecei a cuidar como nas cousas que não tinham entendimento havia também fazerem‑se úas às outras nojo, e estava ali aprendendo tomar algum conforto no meu mal, que assi aquele penedo estava ali anojando aquela ágoa que queria ir seu caminho, como as minhas desaventuras noutro tempo soíam fazer a tudo o que mais queria, que agora já não quero nada. E crecia‑me daquilo um pesar, porque a cabo do penedo tornava a ágoa a juntar‑se e ir seu caminho sem estrondo algum, mas antes parecia que corria ali mais depressa que pela outra parte, e dizia eu que seria aquilo por se apartar mais asinha daquele penedo, imigo de seu curso natural que, como por força, ali estava.

Não tardou muito que, estando eu assi cuidando, sobre um verde ramo que por cima da ágoa se estendia se veo apousentar
[4] um roussinol, e começou tão docemente cantar que de todo me levou após si o meu sentido de ouvir. E ele cada vez crecia mais em seus queixumes, cada hora parecia que como cansado queria acabar, senão quando tornava como que começava então. A triste da avezinha que, estando‑se assi queixando, não sei como, caio morta sobre a ágoa, e caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram também com ela! pareçeo aquilo sinal de pesar àquele arvoredo seu caso tão desestrado. Levava‑a após si a ágoa e as folhas após ela. Quisera‑a eu tomar, mas por a corrente que ali fazia grande, e por o mato que dali para baixo acerca do rio logo estava, prestesmente se me alongou da vista. Mas o coração me doeu tanto então em ver tão asinha[5] morto quem antes, tão pouco havia, que vira estar cantando, que não pude ter as lágrimas.
Certo que por cousa deste mundo, depois que eu perdi outra cousa, não me pareceo a mim que chorasse assi de vontade. Mas em parte este meu cuidado não foi em vão porque, ainda que por a desaventura daquela avezinha fossem causadas minhas lágrimas, lá ao sair delas foram juntas outras minhas lembranças tristes. Grande pedaço de tempo estive assi, embargados meus olhos antre os cuidados que muito tempo havia que me tinham já então, e inda terão, té quando venha o tempo que algúa pessoa estranha, de dó de mim, com as suas mãos cerre estes meus olhos que nunca foram fartos de me mostrarem mágoas.[.....]

Pequeno Glossário:
[1] calor ;[2] não prestei atenção[3] um pouco, algum tanto ;[4] pousar ;[5] depressa


O PRAZER DE LER - 10

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Elogio do livro

Convençam-se: nenhuma escrita digital consigará superar o livro. Porque o papel não é apenas papel. Nele as palavras respiram. Amarelecem. Têm cicatrizes. Carregam anos, anotações de margem, cheiros. Só no papel fazem sentido versos como «Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado», de Herberto Helder. O papel expressa-nos como lume em dia de chuva. Acaricia-nos. É cúmplice dos nossos vestígios que estão para lá do concreto, porque apenas a leitura-escrita primitiva permite a evocação da verdade inalterável das coisas. Da consumação do subjectivo.

Tiago Barbosa Ribeiro in http://laplage.blogs.sapo.pt/

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05/03/05

COISAS MINHAS - 9

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Só a tristeza tem história
por isso nós vivemos a cantar

enrolados em nós esperamos dos outros
a alegria de não estarmos sós
com a história triste do nosso fracasso.



Amélia Pais
imagem de Brancusi

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04/03/05

OS MEUS POETAS - 15 a - o poema completo




O poema do foto-poema foi, de facto, escrito por Fernando Pessoa (autor deste poema de Alberto Caeiro - em 7.11.1915) . Aqui vai, agora completo:


A espantosa realidade das coisas


A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei-de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada,
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos,
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

"Poemas Inconjuntos". In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa.
1ª publ. in Athena, nº 5. Lisboa: Fev. 1925.


Assinalo uma ligeira alteração em relação ao foto-poema: -onde este diz às vezes, Pessoa/Caeiro escreveu, de facto, Outras vezes

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OS MEUS POETAS - 15 (foto-poema)

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03/03/05

INESIANAS - 13





COMO FOI TRELLADA DONA ENES PERA O MOESTEIRO DALCOBAÇA, E DA MORTE DELREI DOM PEDRO.


A tua morte é para mim a morte. A vida é hoje alguém que
conhece a tua ausência, rosa abandonada sobre a pedra.
Caminho para ti, pálidos os lábios, escuro medo de gigantes e
abismos. Ouves? O vencível corpo sombra de outro corpo,
uma grande calma, inabitada ave.


Color albus eum decet senhor - assim lhe disse Pedro
entre círios acesos. Tudo tinha ficado em perfeito estado. Os
estábulos estavam cheios. Havia grão de trigo nos celeiros,
palha e feno nos alpendres. Um cavalo andava no átrio. Era
um velho cavalo. Se quisesse poderia lançar fogo à
seara aos bosques. Mas não queria. Porque dez anos nunca houve
como estes, dizem as gentes sob o vento de nevoeiro.


Entre círios, ouve-nos senhor, com a brevidade de quem acorre a

uma criança que cortou as mãos,
de ti só quero o tempo, o lento desfazer dos olhos,
Entre círios


nunca cessava de enviar recados «color albus eum decet senhor»,
as folhas de mirto cobrirão a branca liquidez dos dedos, o
local que foi rosto - e nenhuma das bestas terríveis surgirá
mortos coroados de inacabadas rosas. Os aspectos perdidos
pelo começo de janeiro
pela madrugada de janeiro,
Por que semelhante amor.


João Miguel Fernandes Jorge - Crónica

imagem: pormenor do túmulo de Inês, em Alcobaça


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02/03/05

DE AMICITIA -2



Est enim amicitia nihil aliud nisi omnium divinarum humanarumque rerum cum benevolentia et caritate consensio ...

Marco Túlio Cicero, De Amicitia

Pois a amizade nada mais é que o acordo perfeito, acompanhado de benevolência e afeição, de todas as coisas humanas e divinas…

trad. De Gilson César Cardoso de Souza
Livraria Martins Fontes,S.Paulo, 2001

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PENSAR - 9


APRENDER A DESAPRENDER

"Numa palavra, devo renascer periodicamente, tornar-me mais jovem do que sou. Aos cinquenta anos, Michelet começava a sua vita nuova: nova obra, novo amor. Mais velho do que ele (compreenda-se que o paralelo estabelecido é afectivo), entro eu também numa vita nuova, marcada agora por este novo lugar, esta nova hospitalidade. Tento assim deixar-me levar pela força de toda a vida viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas surge em seguida uma outra em que se ensina o que se não sabe: a isso se chama procurar. Chega agora, talvez, a idade de uma outra experiência: a de desaprender, de deixar germinar a mudança imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessámos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda que ousarei aqui arrebatar, sem complexos, à própria encruzilhada da sua etimologia. Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível."

.- Roland Barthes, Lição - Comment vivre ensemble: simulations romanesques de quelques espaces quotidiens 1977 -cit. in http://abnoxio.blogs.sapo.pt/
*****
Este texto de Barthes fez-me lembrar um poema -o XXIV -O que nós vemos das coisas são as coisas, escrito em 1914 - d 'O Guardador de Rebanhos, ainda que aqui com dimensão diferente da de Barthes, na perspectiva do desejado impossível regresso à inocência (ao não saber) - em que Alberto Caeiro diz:
[........................]
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê,
Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estudo profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
[...................]

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