30/04/05

PENSAR - 16

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Actores Puros

Porque será que sentimos um desejo de proteger ao observarmos o ser amado que não se sabe observado? Porque será que nos dói o coração ao vermos um par de sapatos abandonado? Ou o ser amado que dorme? Pode ser que o corpo adormecido do ser amado expresse todo o patético desta ausência, todo o desamparo de quem ignora que está a ser observado...Os actores são pagos para fingir que não sabem que estão a ser observados, mas é claro que eles esperam a cooperação de quem os observa, e quase sempre a obtêm. E também há os actores que não são pagos (pensei eu): esses é que é preciso observar.

Martin Amis, in 'Money'

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29/04/05

COISAS MINHAS - 15

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OUTONAL

Cai uma folha no poente destes dias
O que era nítido torna-se difuso
Babel renasce em cinzas de um deserto próprio
E o vento busca em vão uma harmonia

A solidão é em mim um oásis às avessas
Lutando em vão contra a miragem certa


Amélia Pais

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O PRAZER DE LER - 15

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A LEITURA


Meus olhos resgatam o que está preso na página:
o branco do branco e o preto do preto


(Ben Ammar)

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28/04/05

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Paul Eluard

27/04/05

CORREIO DOS LEITORES


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FOMOS NÓS QUE NOS DEIXÁMOS EXPROPRIAR DA FESTA


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo”

(Sophia de Mello B. Andresen)


Quem julgar ser coisa pirosa andar agora a dizer-se que se tem trinta anos por causa do 25 de Abril ou é velhinho ou ainda anda de cueiros. É verdade. Nasci nos princípios da Segunda Grande Guerra e… tenho trinta anos e… não sou piroso. É assim mesmo e andei também no PREC e não estou arrependido.

Naquele tempo, encontrava-me em terra pequena, de grandes vizinhanças e proximidades, de revoltas camufladas e de submissões a fingir: a necessidade aguça o engenho, mas não compra as almas.
Alguns funcionários públicos, da Fazenda e da Câmara, contados pelos dedos das duas mãos; de bancários, o gerente do balcão e o barbeiro que, em tempo de nada fazer, dava uma mãozinha nos formulários; de professores, menos que os precisos; meia dúzia de comerciantes, mais uma pensão para viajantes, de lençóis limpos, águas correntes e comida cheirosa. As almas e as conversas pediam dúzia e meia de tasquitas, em jornada contínua; consoante a hora do dia e os trabalhos nos chãos, abriam--se de quatro a oito cafés.
Por ali andava gente; uns morriam a trabalhar na terra, outros, na terra onde havia guerra; muitos tinham saltado para franças e araganças.

De princípio andava por ali; depressa, provei uma ponta de chouriça, cheirei, depeniquei e engulosinei-me com uma morcela; um vinhito medrado ao sol nascente alegrou-me dos pés até à cabeça e das tripas ao coração… Deixei de andar por ali: passei a estar lá.

Pessoas quentes. Pobretes, mas, de maneira nenhuma, alegretes; a submissão era a fingir e as afeições tinham de ser merecidas. Quem passa a vida a trabalhar na terra ou a morrer na guerra guarda as sementes da liberdade e aprende a conhecer quem vai na carruagem muito para além da aragem.
Pagavam foros que alguém estuporava nos casinos, mas cheiravam a sombra do cobrador e adivinhavam-lhe a chegada: o vento havia levado parte da sementeira, o lobo comido uma rês e a trovoada tinha encharcado o faval: sempre ficava qualquer coisita que não ia parar ao casino.

De vez em quando, aparecia um forasteiro, de chapéu descaído, olhar de estrábico a mirar as pessoas de cima da burra; entrava e saía dos comércios, a tentar contar os leitores do “República” (éramos quinze, sim, senhores) e a “Seara Nova” (aí éramos menos…); sentia tudo frio, logo que chegava; em dias de lume aceso no café, espetava aqueles olhos desgraçados do glaucoma no quentor do brasido…mas a roda estava feita e apertada… já não cabia mais ninguém à lareira.
Quis vingar-se, o malandro, mas já não teve tempo: surgiu “o dia inteiro e limpo” que nos ofereceu “a substância do tempo”. É que, sempre que alguém instalado na burra começa a perder o equilíbrio e os que fazem a limpeza aos cascos já não suportam a bosta, ocorrem as revoluções. Está nos livros e no direito das gentes…

É só assim que consigo falar do 25 de Abril: é a voz dos afectos. A mesma força que leva a que quem guarda as sementes da liberdade não queira que se pise o que acaba de nascer. Por isso, andei no PREC, sim, senhores, e não estou arrependido.

Éramos muitos. Experimentavam-se procedimentos; das lutas de uns e outros se fez a aprendizagem da democracia: nas famílias, nas ruas, nos bairros, nos empregos. De barricadas diferentes, entre conflitos, ora com diálogos, ora com silêncios e algumas ganas, todos sentiam a coisa pública e a coisa privada como assunto que galvanizava e empenhava palavras e actos. A democracia que se aprendia era aquela em que se sabia que não há uns homens que nascem para mandar e outros que andam por cá para obedecer. A participação era a palavra de ordem. Não se depositavam destinos em iluminados, mais ou menos eleitos.
Ainda (e já) se sabia que, mesmo que não se saiba bem para onde se vai, tem-se a certeza de que se há-de lá chegar.

E isto é que era uma festa.

Parece que estamos a regressar da festa. Não porque já não se fale de processos revolucionários, mas porque as paixões mais ou menos solidárias e as lutas sempre conscientes e, por vezes, duras, cederam lugar a esta cousa que nos leva a andar a resmungar de tudo e de todos e a fechar-nos em casa, ou a ir, aos domingos e religiosamente, ao futebol a destilar impropérios contra sulistas e nortistas… para regressarmos a casa com cara de urso, porque no dia seguinte… nunca mais é sábado!


“País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano”

(O’Neill)


Os salazarentos tempos eram assim…
Mas, pior que tudo: fomos nós que nos deixámos expropriar da festa.


Em 2004, trinta anos depois de Abril


Zeferino M. Silva

Obs.: como devem lembrar-se, no final das Notícias do Antigamente, eu interpelava os leitores a, caso o desejassem, as completarem com o seu testemunho. O amigo Zef assim fez, enviando-me esta sua crónica, elaborada em 2004 - que agradeço.


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OMNIA VINCIT AMOR -10

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"Já nada sei e apenas amo"
Guillaume Apollinaire
Zona e outros poemas da cidade e do coração

encontrado in http://moladeroupa.com.sapo.pt/

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26/04/05

OS MEUS POETAS - 23

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Tão Longe


Desta memória eu quereria dizer...

Tão apagada agora... quase nada resta

porque ficou tão longe, nos meus anos primeiros de ser homem.



Uma pele como de jasmim... Na noite

de Agosto... Era de Agosto?... Mal relembro

os seus olhos... Eram, suponho, azuis...

Ah sim, azuis. Azuis como safira.



KONSTANDINOS KAVAFIS (Grécia,1863 -1933)
tradução de Jorge de Sena

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25/04/05

A CANÇÃO DA NOSSA ALEGRIA



ZECA


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Grândola vila morena
Terra da fraternidade
o povo é quem mais ordena
Dentro de ti ó cidade

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola vila morena

Terra da fraternidade

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira

Grândola a tua vontade

Esta é a nossa canção, por excelência. A que deu o mote para o 25 de abril, há 31 anos. É a canção da nossa alegria. É a canção da nossa esperança. Do Zeca Afonso, dos «capitães de abril» - e de todos nós.

Para recordar sempre - e em especial quando o nevoeiro e a vil tristeza ameacem e possa surgir o desalento.

22/04/05

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Amigos: vou estar uns dias fora e, por isso, não actualizarei o blogue. Por outro lado o meu acesso à net está com algumas dificuldades, principalmente depois das 22 horas.Assim, se não houver, durante uns dias, actualizações, não vão pensar que eu esteja doente, não?

Fica-vos uma imagem de libertação - comemorando o nosso 25 de abril...


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ENTREVISTA EM CADEIA

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PORQUE ME FOI PEDIDO PELOS MEUS AMIGOS DE MUSAS ESQUELÉTICAS [http://musas_esqueleticas.weblog.com.pt/]: E TAMBÉM DE DIGITALIS -[http://mhroque.blogspot.com/]

Não podendo sair do "Fahrenheit 451", que livro quererias ser?

Acho que não gostaria de SER um livro…

Já alguma vez ficaste apanhadinho(a) por um personagem de ficção?

Outra resposta complicada…lembro, entre outras, Raskolnikoff e Meursault, Madame de Bovary e Anna Karenine, Sofia e Cristina (de Aparição).E haveria por certo muitas mais.

Qual foi o último livro que compraste?

«Figuras do muito obscuro»- de Yves Namur, poeta belga; «Van Gogh, o suicidado da sociedade», de Antonin Artaud,(andava há muito para o comprar),«Ravelstein» de Saul Bellow e..«A Ilíada» , na tradução de Frederico Lourenço.

Qual o último livro que leste?

Vários de poesia; na ficção,dois em simultâneo-Terra de Neve, de Yasunaro Kawabata e Memórias das minha putas tristes, de Garcia Marquez.

Que livros estás a ler?

A Verdadeira História de Jesus, de E.P.Sanders,- A Ilíada – e vários de poesia.

Que livros (5) levarias para uma ilha deserta?

Levaria todo o Camões, todo o Pessoa, Louvada Seja, de Elytis, Platero e eu - e todos os que coubessem numa pequenina mala ou saco(sobretudo poesia), talvez também A Rosa do Mundo. Far-me-ia falta, talvez, aceder à net – mesmo que não fosse para responder a inquéritos… Não poderia levar um portátil?

A quem vais passar este testemunho (três pessoas) e porquê?

De momento as pessoas a quem ainda poderia mandar estão muito ocupadas para poderem responder…Por isso, a ninguém, para já.

SONHOS

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recolhido em http://www.theresonly1alice.blogspot.com/
formatado por Amélia Pais

NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 10

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um notícias do 'antigamente' especial...

Há 30 anos...o meu Liceu:crónicas contra o esquecimento

Testemunho da Professora Maria Madalena Morna

Andei num Liceu daqueles de arquitectura estereotipada do antigo regime.Era no Porto - um liceu estritamente feminino, que, por descuido do planificador destas coisas, distava apenas cerca de 1 quilómetro de um outro liceu, esse, claro, estritamente masculino.E essa perspectiva assustadora de encontros e cruzamento de sexos era diligentemente resolvida pelas prevenções cooperantes da Reitoria e da PSP: nenhum jovem rapaz podia entrar em conversações com qualquer alegre menina a menos de 500 metros de distância da porta do Liceu .E se as regras eram cumpridas!...

1 de Outubro, recomeço das aulas.

Éramos religiosamente recebidas no Ginásio, numa cerimónia abrilhantada pela presença da abundante Reitora, mulher de grandes alturas e superfícies, de que até o nome, que por respeito omito, enchia e dilatava a já de si roliça pronúncia do Norte. E então era o discurso monocórdico de boas vindas, bons conselhos e boas regras.Tive um episódio de pavor com essa imensa reitora. Num dia de frio a sério, atrevi-me a vestir o casaco sobre a bata.
[A bata era uma instituição. Havia-as de folhinhos para os primeiros anos, de escapulário e pregas para as adolescentes e, já mais crescidinhas, de franzidos para as debutantes finalistas.]
Pois, ia eu ainda na fase dos folhinhos achatados pelo casaco, quando fui chamada à Reitoria. Foi a derrocada: - ir àquele gabinete significava sempre um castigo, fosse ele disciplinar, uma bofetada ou um raspanete. Que teria eu feito?
Tinha os trabalhos de casa em dia, não falava nas aulas, não respondera a essa verdadeira instituição de autoritarismo que era o jardineiro (maldosamente chamávamos – lhe o 'senhor Reitor'...), não ultrapassara ninguém na fila da Cantina, não...não...não... E, mal entrei, a Grande Senhora desabou o seu terrível raspanete: - eu, pecadora, tinha ousado tapar os folhinhos, cedendo à cobardia; e para cúmulo, manchara os sapatos no pátio em correrias impróprias de meninas...
Que vergonha para a instituição! E que alívio para mim!...
Das aulas lembro apenas 3 ou 4 professoras, mas era tudo tão igual que pouco me marcou. Mas não esqueço as «sessões».
Ah! que inefáveis dias, esses em que, uma vez por mês, éramos levados para o Ginásio e sabíamos da nossa pátria, das nossas colónias agradecidas; onde víamos filmes do Chefe Gungunhana, inimigo terrível, que, mostrado num filme a sépia de péssima qualidade, nos horrorizava de tal modo que, à noite, deitada no escuro do quarto, tinha visões aterradoras em que o pançudo selvagem saía pelo espelho do guarda-vestidos para me atacar, a mim, vestida com a farda de jovem defensora dos valores nacionais!
E os feriados? Divinos! Éramos canalizadas para a Biblioteca, onde nos sentávamos calmamente à espera dos livros, que não escolhíamos. De uma das vezes, em que já era "pregueada", lembro-me de ver essa 'jóia'- de - empregada – que – resmungava - sempre - que - entrávamos, subir ao escadote, pegar numa braçada de livros e começar a distribuir. - Pega e lê, toma lá... calhou-me o Conto das Botas Altas. E assim se promovia em mim o gosto pela leitura!...Depois lembro as aventuras loucas de quem não podia andar em sítio nenhum e, então, explorava todos os sítios, relembro as aulas de Ginástica, em que tudo se praticava, e bem ,-trave olímpica,plinto, espaldares, cordas móveis...Lembro-me do oásis: as actividades voluntárias - música e voley. Quantas festas a cantar, quantos jogos disputados!
E, finalmente, o começo super - proibido e, claro que nem imaginado, da militância Pró-Associação de Estudantes. Eram minhas colegas algumas das mulheres 'políticas' de hoje.
E como sofremos a passar folhetos clandestinos sobre a necessidade de inovação e liberdade!Como nos tremiam as pernas ao avistar um polícia! A quem passar a pasta comprometedora? Em quem confiar'?
E o medo, e a coragem, e de novo o medo, e finalmente o alívio - e 20 anos depois, a nostalgia divertida que tudo isto gera!...


Maria Madalena Morna
(F.1996)
(Escito em 1994, 20 anos depois)
Amélia Pais - 31 anos depois,em 2005



Nota: termina aqui a publicação das «minhas» crónicas contra o esquecimento.Nada impede, porém, antes pelo contrário, que outros amigos escrevam as suas lembranças e as coloquem aqui.Preservar a memória é olhar de frente o passado, encarar igualmente o presente - mesmo que por vezes nos pareça de «nevoeiro» ou «de vil tristeza» - e preparar o futuro com esperança reforçada.

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21/04/05

O PRAZER DE LER - 14

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imagem: Edward Hopper, Hotel room


"...e lança um olhar num livro que amas.
Começa assim um dia belo e útil"

Bertold Brecht

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NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 9


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...e depois a festa : crónicas contra o esquecimento

O regime começava a cair lentamente, em processo de corrosão interna que começava também a tornar-se notório aos mais atentos - e que a tentativa militar malograda do 16 de Março vinha confirmar. Uma série de acontecimentos prenunciavam a queda - a publicação do livro de Spínola PORTUGAL E O FUTURO e os acontecimentos a nível de altas chefias militares daí decorrentes, mostravam que havia descontentamento e dúvidas a tais níveis - ora tinham sido justamente os militares que, em 28 de Maio de 1926, tinham instaurado uma ditadura que levaria ao poder Salazar e o seu regime de Estado Novo.

Lembro-me de em Paris, onde passava férias da Páscoa, ter estado com portugueses exilados - neles era já geral a convicção de que em breve seria possível o tal golpe militar de que se começava a falar, nomeadamente na imprensa estrangeira. E também eles perguntavam «noticias do (meu) país» não apenas ao «vento que passa » das trovas de Manuel Alegre, mas a quem vinha de Portugal - para quando a revolução. Aguardavam ansiosamente o fim do exílio forçado e doloroso.

Em 24 de Abril, à noite, ouvindo, como de costume, o programa Limite, na Rádio, surpreendeu-me ouvir ler a 1ªquadra da canção proibida pela censura GRÂNDOLA VILA MORENA,seguida da canção propriamente dita. Surpreendeu-me, mas estava longe de imaginar que essa era a 'senha' do golpe. Dormi normalmente até cerca das 6 horas da manhã, altura em que fui acordada por uma colega que me dava a notícia
de que havia uma revolução.
Liguei de imediato a rádio e ouvi com expectativa os comunicados dum tal MOVIMENTO DAS FORÇAS ARMADAS (M.F.A.) que dizia estar em curso uma acção de libertação do nosso povo, procurando destituir o governo que há 48 anos oprimia o país. Não sabíamos, inicialmente, de que militares se tratava: - se de militares democratas, se de 'ultras' militares de extrema-direita que contestavam Marcelo Caetano, por 'brandura'. Creio que nunca se ouviu tanto rádio como nesse dia - estávamos presos dos comunicados, das notícias, de saber o que se seguiria.

Fui para a escola tentar dar aulas 'normais' - naturalmente tarefa impossível, e se calhar nem sequer desejada. As autoridades da escola, essas, estavam fechadas no antigo gabinete do Reitor, ouvindo rádio - a ver, também, no que dava....Às 3 da tarde já se sabia: - o poder autoritário tinha sido derrubado, aguardava-se a rendição de Marcelo Caetano, refugiado com os seus ministros no Quartel do Carmo, onde era a sede da fidelíssima Guarda Nacional Republicana. Essa rendição far-se-ia mais tarde, às ordens de Salgueiro Maia, o 1ºherói conhecido do golpe [fora também aluno desta nossa Escola Secundária de Francisco Rodrigues Lobo].

Entretanto, às 3 da tarde, e com a presença já das autoridades liceais (Reitor e Vice-Reitores), fomos todos para o Ginásio, no 1ºdos muitos Plenários que se seguiriam. Houve algumas palavras do então Reitor, que afirmou que nunca tinha vivido em democracia - e por isso, também ele iria ter muito que aprender. Falaram mais professoras, mais ou menos conotadas com a até ali oposição democrática - e conhecidas como tal. Lembro-me da palavra de ordem mais aplaudida: Hoje começa uma nova vida para todos nós - uma vida de liberdade. Há tudo para fazer. Por isso, não há tempo a perder. COMECEMOS DESDE JÁ A TRABALHAR!

E é essa a minha principal memória do dia - o dia que depois seria o 'dia da liberdade' : de descompressão, de libertação, da festa - que o foi.
Nunca vi tanta gente contente. Por uns tempos as pessoas foram diferentes: sorriam abertamente umas para as outras, não se insultavam na estrada, davam mais facilmente boleias, exigiam mais justiça, mais fraternidade, mais solidariedade - e o fim da guerra e a liberdade para os povos colonizados. Aprendiam a falar abertamente, a tomar a voz em plenários, em sindicatos, em manifestações.
Acreditámos piamente que estávamos a construir um mundo melhor, mais fraterno, mais justo. Empenhámo-nos a sério - acreditámos que era possível a o país da utopia .

Muito errámos em muitas ocasiões. Fomos enganados na nossa boa fé, outras tantas. Mas nunca professores e alunos estiveram tão unidos na sua generosidade, nunca vi juntar-se tanta gente em torno do que consideravam boas causas (mesmo que, mais tarde, viessem a considerá-las não assim tão boas...).

Nem tudo correu bem, é certo. A história far-se-á desapaixonadamente um dia. Mas foi bom poder ver a libertação dos presos políticos, foi bom ter a ilusão de que podíamos reconstruir a História,- foi bom também ver mais tarde o país seguir, após os sobressaltos de 2 anos, uma vida democrática, moderna, europeia, civilizada.

Foi bom estar nas primeiras eleições livres, em 1975, como tinha sido linda a festa do 1º primeiro de maio...em 1974. FOI BOM VER A FESTA. Uma festa de todo um povo que era bom e generoso - e se muitos pecámos durante o chamado Período Revolucionário em Curso, a verdade é que o balanço final é positivo : podemos orgulhar-nos de sermos um país e um povo que soube vencer a 'austera, apagada e vil tristeza' de que já Camões falava, de recuperar direitos de cidadania longamente usurpados, de se erguer, sem complexos, face a uma Europa que finalmente nos aceitava no seu seio, como igual em dignidade e direitos.

E de termos feito uma revolução de um modo geral civilizada, a primeira 'de veludo' das que aconteceriam na Europa - uma Europa que assistiu mais tarde, à libertação do povo espanhol, dos países do Centro (Alemanha de Leste, Polónia, Hungria, Checoslováquia, Roménia e Bulgária),dos Países Bálticos e, finalmente , de outros povos e nações da ex - União Soviética. Uma Europa maior porque mais livre - mesmo se albergando ainda grandes inquietações e,posteriormente,uma guerra terrível na Bósnia e noutras regiões da ex - República da Jugoslávia...

Depois de termos mostrado a essa Europa como era o mapa do mundo, depois de séculos de 'vil tristeza', erguíamo-nos de novo, encerrando o ciclo do império, sempre atlânticos, recuperando a grandeza [comprometida em Alcácer - Quibir] de não aceitar como fatal a infelicidade, o 'nevoeiro' de que falava Fernando Pessoa - e de podermos voltar a sonhar uma pátria mais justa e solidária.
E foi bom, também, ver nascer os países africanos de expressão portuguesa, que hoje são povos irmãos e não já inimigos.E ver libertar-se de outras ditaduras o Brasil, a Argentina e outros povos de além - mar.

Compete-nos continuar o sonho, crescer mais e melhor, e, sobretudo, reparar injustiças, democratizar e desenvolver mais - visto que a missão de descolonizar, bem ou mal, foi feita. Essa é a tarefa dos políticos, é certo, mas é também a de cada um de nós.

(continua)

Amélia Pais

[obs.: teria mais lógica fazer sair esta crónica(penúltima) no dia 25 ...só que muito possivelmente não terei possibilidade de aceder à net,por me encontrar fora de casa].Assim vai já hoje, seguindo a última amanhã.Mas podem contar aos meninos só no dia 25...]




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DE AMICITIA -9

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beaucoup de mes amis sont venus des nuages
avec soleil et pluie comme simples bagages
[...]
ils ont cette douceur des plus beaux paysages
et la fidélité des oiseaux de passage

Françoise Hardy canta
Jean-Max Rivière escreveu a letra;Gérard Bourgeois fez a música;© 1965 - Disque vogue

cit. em linha de cabotagem - http://linhadecabotagem.blogspot.com/

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20/04/05

NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 8


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o aparelho repressivo - a P.I.D.E.. : memórias contra o esquecimento

Já falámos nas 'notícias' anteriores de como o salazarismo se conseguiu implantar graças, principalmente, à promoção do obscurantismo [manutenção em estado de analfabetismo ou semi-analfabetismo de grande parte da população, política educativa marcada ideologicamente, de que destacámos, a existência de livro único, o controle exercido sobre os professores e principalmente os do ensino primário, a não democratização da gestão das escolas, a proibição de associações de estudantes no ensino secundário e o controle das universitárias, a proibição de sindicatos de professores, etc, a existência da Mocidade Portuguesa e da Mocidade Portuguesa Feminina - lembremos sempre a afirmação despudorada de Salazar de que quanto mais ignorantes, mais humildes]; - tal obscurantismo prosseguia, já fora da escola, com a instituição da censura à imprensa , aos livros e aos espectáculos - do mundo e de Portugal só se sabia o que era conveniente ao regime - e as grandes questões nacionais não podiam sequer ser discutidas - por exemplo, as questões de regime ou a guerra colonial, ao abrigo do lema salazarista : não discutimos deus, não discutimos a pátria, não discutimos a família...

Mas, para além destes eficientíssimos instrumentos de controle do pensamento e da inteligência, havia também, para quem conseguia furar o bloqueio, instrumentos repressivos muito eficientes. Tratava-se das polícias em geral, da Legião Portuguesa, tropa de elite enfeudada a Salazar -como os camisas negras ao fascismo italiano, ou os S.S.a Hitler, e, sobretudo, da polícia secreta, primeiramente chamada P.V.D.E .(os oposicionistas chamavam-lhe a 'pevide'),depois P.I.D.E.(Polícia de Informação e Defesa do Estado) e, nos últimos tempos do regime, D.G.S.(Direcção Geral de Segurança).

A Polícia secreta de Salazar funcionava, como outras polícias secretas do mundo, com base numa rede tentacular de informadores (em linguagem vulgar 'bufos') que, a troco de salário, espiavam todos. O clima era tal que ninguém ousava exprimir opiniões nos cafés, nas aulas -nunca se podia ter a certeza se o amigo com quem estávamos ou um seu parente não seria um 'bufo'...
Vivia-se, como em período de Inquisição, no clima que António Ferreira, poeta do s. XVI, definira assim : "A medo vivo, a medo escrevo e falo, e hei medo do que penso só comigo".
A Pide espiava, fazia crescer os seus ficheiros, prendia, torturava, matava (para além dos presos do campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, foram assassinados pela Pide o General Humberto Delgado e o pintor José Dias Coelho - cujo assassínio é tema da canção de José Afonso, A morte saiu à rua - e alguns estudantes).

E como as pessoas tinham medo de falar abertamente de política, inventavam-se muitas e saborosas anedotas, cujos protagonistas eram Salazar, o Almirante Tomás, a Pide, etc...Mas mesmo essas anedotas eram só contadas entre amigos...não fosse o diabo tecê-las...

Havia para algumas pessoas dificuldade em obter passaporte - além de que só se podia pedi-lo para determinados países - estavam excluídos todos os países comunistas da época; a sua emissão dependia da informação da Pide; por exemplo, quando eu quis obter o meu 1ºpassaporte, em 1964, (ainda que oposicionista, eu não militava em nenhum partido) tive de dizer na Pide, em Coimbra, para onde ia, que ia fazer, etc.. Cometi a ingenuidade de dizer que ia a um curso na Universidade da Paz, na Bélgica. Obtive passaporte, mas, após o regresso, fui visitada por um 'pide' que queria saber afinal o que era isso da Universidade da Paz - é que estávamos em guerra e falar de paz era algo de subversivo. E eu era na altura estudante universitária - logo, suspeita. Além de que o fundador dessa Universidade da Paz era um dominicano, Prémio Nobel da Paz de 1958, que começava a incomodar um pouco o governo português, intervindo em casos de prisão arbitrária de pessoas, denunciadas pela Amnistia Internacional e por alguns padres portugueses mais corajosos, na altura designados de 'progressistas', em oposição à generalidade da Igreja Católica, que apoiava claramente Salazar, pessoa muito devota - e também em casos de massacres na guerra colonial igualmente divulgados na informação estrangeira. Chamava-se esse dominicano Dominique Pire, foi meu amigo, amava Portugal e morreu sem ver o 25 de Abril de 1974.

De resto, seriam ainda da responsabilidade da Pide os únicos mortos da revolução de Abril. Esta, a revolução, acabou por ser generosa e libertou os alguns pides que ainda foram presos. Do mesmo modo que deixou partir em paz os grandes responsáveis do regime, nomeadamente Américo Tomás, o Presidente, Marcelo Caetano, o 1ºMinistro- e quase todos os membros do governo de então.

Só uma dúvida subsiste ainda para mim: - como foi possível que a revolução de 25 de abril triunfasse tão rapidamente, apesar da Pide tudo controlar - sem encontrar, praticamente, resistência? Para mim este foi e é ainda um enigma - que talvez só daqui a muito tempo se desvendará...

Claro que o chamado fascismo português não foi tão violento e sanguinário como o foram o alemão (viste a lista de schindler?), o italiano, o espanhol (franquismo) ou o soviético, chinês ou cambojano (bem sei que a alguns destes não é costume chamar-se fascismo...). Mas também não foi preciso...É que a política de promoção do obscurantismo de que falámos, e os nossos tradicionais 'brandos costumes', evitaram o recurso sistemático à violência física.

No fundo éramos ' bem comportadinhos ' - para além de sermos na época um país fortemente rural (perto de 70%de população rural) a quem os padres ensinavam que a recompensa do sofrimento viria após a morte...Por isso, a contestação do regime foi, sobretudo, obra de intelectuais (esses até liam ...nomeadamente livros e revistas estrangeiras), estudantes (que para intelectuais caminhavam) e de operários das zonas mais industrializadas,(Lisboa, Marinha Grande) com tradições de sindicalismo e de politização, conseguida, nomeadamente, pela influência do na altura clandestino Partido Comunista e não só. - e depois, a fome quando aperta, aperta mais nas cidades e zonas industriais do que no campo...como continuamos, infelizmente, a saber.
[1]

(continua)


Amélia Pais


[1] Há um romance muito bonito de José Saramago que te recomendo. Chama-se Levantados do Chão e fala de tudo isto...

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PENSAR -15

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a palavra é tempo, o silêncio é eternidade


M.Maeterlinck

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NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 7

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A guerra colonial: memórias contra o esquecimento


Como todos sabemos, Portugal foi senhor de um vasto império que ,em determinada altura, lhe dava o senhorio de metade do mundo - dizia Camões, tratava-se de um Império que "o Sol logo em nascendo vê primeiro/ Vê-o depois no meio do Hemisfério/ E quando dece o deixa derradeiro" -ou seja, que ia do extremo Oriente [Timor] ao Ocidente [Brasil]. Este Império circunscrevia - se, em 1961, aos territórios de Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé, Angola, Moçambique, Macau e Timor. Até essa data tínhamos ainda o chamado Estado Português da Índia (Goa, Damão e Diu).

Éramos já, nessa altura, o último país com posse de territórios coloniais, apesar da doutrina oficial de que se não tratava de colónias, mas de províncias ultramarinas - com o mesmo estatuto do Minho ou do Alentejo.
No entanto, nunca, por exemplo, Salazar visitou esses territórios - e a verdade é que a moeda e muitas das leis desses territórios eram diferentes. Eram governados por Governadores-gerais, nomeados por Lisboa.
De resto a ocupação de tais territórios, principalmente, dos africanos, só se tinha feito verdadeiramente a partir do último quartel do s. XIX, perante a necessidade de os defender da cobiça de outros povos europeus, como a Inglaterra. Até aí, mais não eram, praticamente, que colónias penais, ou, em tempos mais remotos, zonas de captura de escravos ou portos necessários ao comércio com o Oriente..
Nesses territórios as autoridades portuguesas exerciam discriminação sobre os negros, do tipo do 'apartheid' sul-africano, como era o caso de Moçambique; noutros, havia, de facto, legislação especial para os 'pretos', a quem não eram, quase, reconhecidos direitos. No entanto, era-lhes ensinado a História de Portugal, fazendo-os descender dos "avós lusitanos"; e, em Portugal dito Continental, aprendíamos os rios, montanhas e caminhos-de-ferro de Moçambique e Angola...
De resto, em Moçambique, por exemplo, só 1% da população negra era alfabetizada...o que não abona muito em favor de uma obra dita de civilização...Eram, de facto, países que nos forneciam riquezas várias e que, em contrapartida, procurávamos 'desenvolver' economicamente, para nosso proveito. Só depois de 1961 ( e em virtude dos primeiros ataques nacionalistas dos chamados 'indígenas' e, mais tarde,'terroristas') se fundaram universidades em Angola e Moçambique também.
Mas o tempo dos Impérios tinha acabado - em África como, no s. XIX, nas Américas.
Verificaram-se, então, por todo lado, guerras de libertação conduzidas por tais movimentos nacionalistas. E justamente em 1962, Angola assistia às primeiras lutas pela independência, a que se seguiram, em breve, idênticos movimentos em Moçambique e Guiné.

A este justo desejo de independência, reagiu Salazar e o seu governo, encetando uma guerra colonial que se prolongaria até 1974, com perda de vida de milhares de soldados e oficiais, sobretudo milicianos, não de carreira (não me ocorre o nome de nenhum general...) numa guerra que nem todos consideravam justa e a opinião mundial reprovava.
Muitos dos soldados que a fizeram achavam sinceramente que defendiam a pátria e, por isso, o seu sacrifício deve ser respeitado. Afinal eles também foram vítimas de Salazar...e não eram voluntários para essa guerra.
Não era o caso de muitos outros - para além de desertores e refractários, exilados no estrangeiro,(recusavam participar de uma guerra injusta), muitos oficiais de categoria intermédia e um General - o General Spínola - achavam que, - não havendo hipótese de vitória militar, - seria continuar a correr contra os ventos da História - mais valia entrar em negociações políticas aceitáveis e em formas de cooperação futura . Entretanto, para além de perda de vidas portuguesas e africanas, havia histórias de massacres cruéis,entre os quais o de Wiryamu, uma aldeia do Norte de Moçambique queimada com napalm [como no Vietname], e milhares de mutilados, física e psicologicamente.

Para além do mais, não se podia discutir publicamente a guerra - nem sequer na Assembleia Nacional - e a censura à imprensa reforçou-se em tudo o que dizia respeito à guerra - não se passavam, à semelhança do que acontecia com a Guerra do Vietname, ou, mais recentemente, com a guerra do Golfo,e a do Iraque, imagens televisivas, em Portugal. A própria correspondência dos soldados era censurada antes de chegar às famílias.

Porque uma guerra nunca é uma coisa boa, porque uma guerra colonial não era, de modo algum, justa, à luz dos valores de respeito pelos homens e pelos povos, porque a condenação internacional era unânime, se fez em 25 de Abril de 1974 uma revolução - do seu programa constava Descolonizar – Democratizar - Desenvolver. E uma das primeiras tarefas foi mesmo descolonizar - para muita gente numa descolonização necessária, mas 'precipitada' e 'mal feita'. Isso é assunto para discussão ainda, mas é irreversível. E hoje é bom termos tais povos como amigos - até pela língua que adoptaram como sua e pelo passado comum.
Além disso ,é bom saber que, se tudo correr bem a nível internacional, não teremos que fazer mais guerras...E podemos apostar preferentemente na paz e amizade entre os povos e na defesa do nosso habitat natural : a Terra - e na melhoria de condições dos seus habitantes.

Nota:

Mais grave, como se sabe, foi a questão de Timor Leste, que só depois de longo sofrimento e luta contra a ocupação indonésia, viria a tornar-se independente em 2002,como talvez ainda esteja na memória de alguns.

(continua)

Amélia Pais

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19/04/05

OS MEUS POETAS - 22

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DOIS EXCERTOS DE ODES

I - Vem, Noite antiquíssima e idêntica

......

Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde - quem sabe? - Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.

(30-6-1914)

Fernando Pessoa- Poesias de Álvaro de Campos.
1ª publ. in Revista de Portugal, nº4. Lisboa: Jul. 1938.

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NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 6

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A Mocidade Portuguesa - crónicas contra o esquecimento



O regime salazarista cedo entendeu que, para se consolidar, um sector importante seria, a par da censura à imprensa e espectáculos e da polícia política, o do 'endoutrinamento' dos jovens portugueses, mediante a veiculação da ideologia do Estado Novo na escola.

Tal era, basicamente, conseguido de vários modos:
- já falámos um pouco do controle apertado dos professores pelos reitores' e seus 'ajudantes' -
- os reitores e vice-reitores - nomeados pelo Governo, e pelos serviços de inspecção (lembramos que os professores tinham de fazer anualmente uma declaração de apoio ao regime e de repúdio 'activo do comunismo e de outras ideologias subversivas');
- pelo conteúdo dos programas, e nomeadamente dos livros de estudo 'únicos' aprovados, não pelos professores, mas pelo Ministro da Educação .
[1]
- finalmente pela criação, desde 19 Maio de 1936,da Mocidade Portuguesa e da Mocidade Portuguesa Feminina.

Tratava-se de uma organização de inscrição obrigatória para todos os estudantes e de tipo para- -militar (à semelhança de organizações congéneres alemãs e italianas, de tipo fascista, bem como das Juventudes Comunistas dos países da órbita soviética).
A Mocidade Portuguesa tinha um Comissário Nacional da confiança de Salazar - e era organizada à maneira de um exército, com as seguintes divisões: as quinas (grupo de 6 elementos, chefiados por um 'chefe de quina'); os castelos (30 elementos, chefiados por um 'comandante de castelo')e as falanges ou bandeiras (comandados por um comandante de falange e constituídas por 240 elementos); portanto, um mini - exército devidamente hierarquizado, para rapazes e raparigas. Havia também 5 categorias etárias de filiados: os lusitos (7-10 anos); os infantes (10-14 anos); os vanguardistas (14 a 17 anos)e os cadetes(17-25 anos).

E o que se fazia nas tardes destinadas às actividades da Mocidade Portuguesa?

Havia uma 1ªpreparação paramilitar para os rapazes, que envolvia uma espécie de 1ª'recruta 'a partir dos 17 anos havia também uma forte preparação física - ginástica e desportos [os professores de Educação Física viviam na dependência dos responsáveis da Mocidade Portuguesa nas escolas em que leccionavam; a sua continuação na escola dependia de boa informação dada pelo(a)responsável da M. P. ou M.P.F.]; havia também outras actividades extra-curriculares de ideologia nacionalista, mas também de índole cultural e recreativa - por exemplo, as 'meninas' podiam ter aulas de enfermagem, 'arte de dizer', culinária ,etc, de modo a poderem vir a ser as 'sentinelas das mais lusas tradições' '-'as lusitanas vigias', enquanto competia aos 'varões', ou seja, aos rapazes, defender a Pátria 'de armas na mão'.

Cultivava-se, por um lado, para todos um patriotismo de feição 'patriotinheira' - nós, portugueses éramos o povo' entre todos escolhido para povo do Senhor',
[2] os melhores do mundo, os que sempre tínhamos tido Deus do nosso lado (desde o milagre de Ourique) e sempre tínhamos feito o bem, por idealismo, levando desinteressadamente a civilização aos pretos e outras raças, na África, na Ásia, no Brasil...ao contrário dos outros povos, quase sempre 'os maus', que só se moviam por interesses económicos, pouco nobres ;,e, por outro lado, o sentido do dever de obediência aos chefes - no hino dos 'lusitos' (7-10 anos) dizia-se :"Somos pequenos lusitos / Mas já firmes e leais / honramos e respeitamos / nossos chefes, nossos pais // Temos pela Pátria amor / e esperança no porvir / De bom grado aqui vimos / o nosso dever cumprir..."//[...] E se algum dia /preciso for /ir combater pela Nação /iremos com a fé em Deus e a Pátria no coração"

Como já foi dito, era obrigatória a inscrição na Mocidade Portuguesa - e para os rapazes a aquisição de uma farda semelhante à da tropa, castanha e verde, com as insígnias da organização - o cinto fechava com um S - oficialmente de "Servir no Sacrifício", mas que era vulgarmente interpretado como Servir Salazar...
Havia também inúmeros cânticos patrióticos / patriotinheiros que celebravam o culto dos heróis, dos chefes, do sacrifício e da obediência.

Por ex. um tinha o seguinte refrão:

Dos valentes Portugueses / Honremos a sua glória / Aos mouros e Castelhanos / Alcançam sempre a vitória // Pelos mares abrem caminhos/Em todas as direcções/ E assim mostram novos mundos/ às conhecidas Nações. //Tenho orgulho / em ser filho/desta tão linda nação/Tão bonita, tão formosa/que a trago no coração...

O equipamento de ginástica levava também colado o emblema da M.P./MPF.E os cadernos diários, folhas de testes, etc., vendidos exclusivamente nas escolas, igualmente.) Havia anualmente desfiles e paradas no 1ºde Dezembro e 10 de Junho, acompanhados de grandes festivais ginásticos.

[E de novo nos vem à memória o que se vê nos filmes sobre Hitler e Mussolini e também nos festivais de juventude que ocorriam nos países comunistas;De resto a saudação da Mocidade portuguesa era a saudação hitleriana - que agora os grupos e 'gangs' neo-nazis também adoptam - ].


Nas escolas primárias cumprimentavam-se assim o professor e os retratos obrigatórios de Salazar e do Presidente da República. E rezava-se obrigatoriamente diante de um crucifixo colocado a meio dos dois retratos. Pelo menos nas aldeias era assim. - Na escola onde andei era assim, juro.

A Mocidade Portuguesa desenvolvia também actividades sociais de tipo caritativo - de que se destacava, para as 'meninas', a feitura de 'enxovais' para oferecer aos bebés pobres no dia das Mães(na altura,8 de Dezembro).
Muitos dos elementos e quadros mais destacados da Mocidade vieram a ser os futuros quadros de confiança de Salazar.
A partir de 1966 (data em que Marcelo Caetano se tornou primeiro-ministro e quis dar mostras de alguma ‘abertura’ do regime) a Mocidade abandonou as práticas e treinos paramilitares e ficou apenas com actividades de acção social escolar, circum - escolares e de ocupação de tempos livres para jovens não estudantes. A Mocidade Portuguesa, como a P.I.D.E., a Censura, a Legião Portuguesa foram naturalmente extintas após o 25 de Abril de 1974.

A autora destas linhas teve, durante 7 anos, de ler, em todos os cadernos diários que obrigatoriamente deviam ser adquiridos no Liceu
[3] que frequentou, cadernos ornamentados com o emblema da Mocidade Portuguesa, frases deste tipo (à força de as ler diariamente, decorei mesmo):


TUDO PELA NAÇÃO- NADA CONTRA A NAÇÃO

"Temos de lutar pela verdade da vida que é luta, que é sacrifício, que é dor, mas que é também alegria, céu azul, almas lavadas e corações puros"(Oliveira Salazar)-

- um pouco à maneira do 'livro vermelho' de Mao Tse Tung ou do ' livro verde' de Khadafi...

Por isso, não recorda com saudade tais tempos - mas entende dá-los a conhecer, para que os mais novos fiquem a saber como era - e vejam como o 25 de Abril de 1974 era necessário.
[4]

De resto, verdade se diga que também os grandes e pequenos responsáveis do anterior regime e das suas organizações, a nível nacional e local, se deram depois conta de que, afinal, viver em democracia é melhor e acabaram por saudar - vamos acreditar que com sinceridade - os novos tempos .E ainda bem, para todos vivermos contentes...


(continua)

Amélia Pais

____________________

[1] a título de exemplo: era recomendado não adoptar ou recomendar a História da Literatura Portuguesa de Oscar Lopes e António José Saraiva (ambos intelectuais de esquerda);e cortavam-se os textos considerados «escabrosos» d’ Os Lusíadas(por ex., entre outros, todo o Canto IX – Ilha dos Amores- considerado imoral).
[2] Cantava-se num cântico religioso
[3] Liceu Nacional de Viseu, hoje Escola Secundária Alves Martins.
[4] Para os ainda mais novos: sabias que não podia beber-se Coca-Cola antes do 25 de Abril?
e que se tinha de pagar imposto para usar isqueiro? e tinha de se pagar um imposto de guerra a partir de 1961(guerra colonial) no valor de 1%sobre artigos de luxo? -entre eles, era considerado «de luxo» o frigorifico...

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18/04/05

ESCREVER - 4

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Formatação de Amélia Pais

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NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 5

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notícias do 'antigamente'- crónicas contra o esquecimento

os jornais/a censura *:

Não havia Liberdade de imprensa - isto é, de informar os cidadãos sobre o que se passava. Salazar instituiu, por decreto de 19.04.1933, a censura prévia a todas as publicações periódicas, folhas volantes, folhetos e outras publicações,
bem como a espectáculos, sempre que abordassem assuntos de carácter político ou social (lutas operárias, por ex.). As comissões de censura cometeram inúmeros abusos, por conta de tal decreto – muitos jornalistas acabaram por ser julgados em tribunais comuns ou em tribunais especiais,para crimes políticos.

Como funcionava: Em Lisboa, os serviços de censura recebiam os telexes das agências noticiosas; depois davam resposta: livre, cortado (total ou parcialmente) ou suspenso. As agências transmitiam então estas indicações aos jornais. No caso de notícias do país, os jornais enviavam provas dos textos já compostos tipograficamente, recebendo, depois, instruções sobre o que deveriam 'cortar' - o famoso lápis azul assinalava os cortes. Assim, os leitores só sabiam o que convinha aos censores, ou seja, ao governo. Ou então, o que liam em revistas ou jornais estrangeiros (quem tinha acesso a eles) ou captavam em emissões clandestinas em onda curta, na rádio.

Alguns exemplos da censura (notícias censuradas):

«Julgamento de abate de burros, no Tribunal de Géneros Alimentícios: Não pode ser publicada qualquer referência aos meios coercivos
[1]para obter confissões.»

«Inundações :os títulos não podem exceder a largura de 1/2 página e vão à Censura. Não falar no mau cheiro dos cadáveres. Actividades beneméritas de estudantes: cortar»

«Posto em liberdade, por lhe ter sido concedido o Habeas Corpus, o Dr. Mário Soares apresentou cumprimentos aos jornais--cortar»

«Telegrama 140 da Reuter. Não audir, no título, ao Partido Comunista Português, pois é coisa que não existe.»
[2]

«Final da Taça de Portugal (Benfica - Académica. Não falar em luto académico.» (obs. em virtude da repressão exercida sobre movimentos associativos em 1969)

«Não dizer, em título, que foi aprovada em Itália a lei do divórcio. Dizer que foi apreciada.»

«Fotos de brinquedos de Natal, reproduzindo armas de guerra. - cortar as legendas pacifistas.»

«O Papa recebeu no Vaticano terroristas portugueses - cortar tudo. muito cuidado.»(obs.: tratava-se da notícia de que o Papa recebera representantes de movimentos de libertação das colónias portuguesas de África)

«Reitor do Liceu de Faro diz que os resultados dos exames ainda não saíram devido a estarem os professores fatigados. - cortar»

«Proibido dizer que no Rossio soltaram um animal (porco) com um barrete de almirante (crítica à eleição de Américo Tomás), pelo que houve cargas de polícias e prisões.»

«Sá Carneiro renunciou ao cargo de deputado e, nesse sentido, escreveu uma carta ao presidente da Assembleia - notícia e carta estão proibidas.» (obs .: Sá Carneiro tinha sido eleito como liberal para a Assembleia Nacional, mas demitiu-se por discordância política; após o 25 de Abril viria a fundar o PSD e chegou a primeiro-ministro)

«Notícia de que uma família vivia numa barraca e, depois, foi instalar-se numa casa, de onde o senhorio a expulsou - cortar

«Reclame do livro do general Spínola Portugal e o Futuro - É para proibir

«Reunião de bancários hoje em Lisboa. Reduzir ao mínimo. Só dizer: realizou-se ontem»

*Elementos deste texto foram extraídos do livro de Victor Silva Lopes, Iniciação ao Jornalismo - CLB, Lisboa, 1980


imagem: o carimbo indispensável à saída do jornal

(continua)


Amélia Pais

_________
[1] Leia-se prática de tortura nas prisões
[2] Como sabes, existia clandestinamente desde os anos 20 – e deram bastante que fazer à Pide...

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OMNIA VINCIT AMOR -9

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imagem: Francesca(di Rimini) de Gulácsy


Amor, ch’a nulla amato amar perdona,
mi prese di costui piacer sì forte
che, come vedi, ancor non m’abbandona. “

Dante Alighieri

O Amor que não perdoa a nenhum amante
me tomou de um prazer tão forte
que, como vedes, ainda está em mim.


(trad. caseira de A.Pais)

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17/04/05

NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 4

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notícias do 'antigamente'-crónicas contra o esquecimento

Situação das mulheres

Fala-se muito agora de direitos das mulheres, de direitos da família, etc.. E como era antes do 25 de abril de 1974?

As mulheres raramente tinham autonomia jurídica - primeiro dependiam dos pais e, depois, dos maridos. E as relações na família eram de ausência de direitos iguais face, por exemplo, à escolha do domicílio ou à educação dos filhos. Assim, domicílio conjugal = domicílio escolhido pelo marido; a mulher não podia abandoná-lo. A educação dos filhos era decidida pelo pai (de preferência de acordo com a mãe, mas, não havendo acordo...vingava a escolha do marido).

Mulher casada não tinha passaporte individual e só podia ausentar-se para o estrangeiro com autorização escrita do marido (como hoje sucede para os filhos menores)
[1]

Quanto às professoras do ensino primário (actual 1ºciclo), tinham de ter autorização do governo para casar...E as enfermeiras, essas, não podiam casar. Por isso, grande parte das enfermeiras eram freiras...e as que o não eram gozavam de má reputação entre os rapazes…

Já sabemos que nem todas as mulheres tinham direito de voto: só as chefes de família (solteiras ou viúvas) ou as que tivessem uma profissão remunerada.

Nas escolas: - as alunas e, em algumas escolas, as professoras, tinham de usar bata de modelo uniforme. Não eram admitidas na escola se vestissem calças - trajo só autorizado para os rapazes e cavalheiros. Uma vez, na escola onde leccionei, a Rodrigues Lobo, em Leiria, uma professora apresentou-se de calças. Foi mandada para casa e só pôde dar aula quando regressou, vestida de saias.

Numa outra escola em que estive a fazer o meu estágio, os professores - homens podiam fumar na sala de professores ; as professoras, não - tinham de 'refugiar - se' nas casas de banho e fumar às escondidas...era considerada prática pouco decente para senhoras...

As pessoas casadas pela Igreja (a maioria) não podiam divorciar-se e voltar a casar pelo civil. Podiam, naturalmente, separar-se e arranjar outras famílias - mas ficavam sempre em posição não reconhecida juridicamente pela lei e os filhos de nova ligação ou eram considerados ilegítimos (os filhos ilegítimos, para além de serem 'mal vistos' pela sociedade, não tinham quaisquer direitos a herança e protecção dos pais) ou eram considerados filhos do anterior 'casamento', que permanecia indissolúvel em termos legais. Isso causou grandes problemas nas famílias, como podes calcular. Resultava de um acordo, feito em 1943 com o Vaticano , chamado Concordata.
Por isso, uma das primeiras medidas tomadas pelos governos democráticos saídos do 25 de Abril, foi denunciar e renegociar a Concordata. Hoje, não sendo uma solução muito desejável,em todo o caso o divórcio é reconhecido pela lei e as famílias podem optar por ele, sem problemas jurídicos - bem bastam os outros problemas que um divórcio arrasta consigo....

E havia um hino da Mocidade Portuguesa Feminina
[2] que dizia que as mulheres serviam (só) para ser guardiãs das tradições lusas, entre as quais a tradição cristã - na guarda da Pátria:- aos varões competia defender a pátria de armas nas mãos:


"Olhai, sim, que no seu posto
De lusitanas vigias
A missão destas fileiras
não é nas lutas guerreiras
é nas lides salvadoras
é a lembrar à Nação
que tem as chagas de Cristo
Nas quinas do seu brasão
".
(excerto do hino da MPF)

Hoje, felizmente, a mulher é considerada como igual em dignidade e direitos (e também em deveres) ao homem- o que é salutar para todos, homens e mulheres. Falamos de igualdade teórica e jurídica - que da igualdade real - haveria ainda muito que dizer...porque muito há ainda para fazer...

(continua)

Amélia Pais

_______

[1] Um meu amigo alemão fazia humor sobre o assunto, dizendo que as mulheres portuguesas eram a bagagem dos maridos...
[2] organização escolar, de inscrição obrigatória, tendendo a assegurar a formação cívica (entenda-se, de acordo com a lei e a ordem salazaristas) das raparigas.

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COISAS MINHAS - 14/3


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TRÍPTICO

(à maneira popular...)



III

Quem vai responder
o que não tem resposta
Quem vai falar

o que não tem palavra
Quem vai achar

o que em nós esquece
Quem vai roer

o que em nós sufoca

Vem noite ou pranto ou dia ou vento
Quem quer que sejas que seja o novo
Abrindo o canto
na carne clara.
Amélia Pais

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16/04/05

DE AMICITIA - 8

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AMIGOS
(excertos)


Tenho amigos que não sabem o quanto são meus amigos.
Não percebem o amor que lhes devoto e a absoluta
necessidade que tenho deles.
[………..]
Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a
roda furiosa da vida não me permite ter sempre ao meu lado, morando
comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus
amigos, e, principalmente os que só desconfiam ou talvez nunca vão saber
que são meus amigos!
A gente não faz amigos, reconhece-os.

Vinícius de Moraes

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NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE - 3

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notícias do 'antigamente'- crónicas contra o esquecimento



COMO ERAM AS ELEIÇÕES QUE HAVIA

Provavelmente já saberás que não havia partidos políticos de oposição legais – havia , por um lado, e devidamente autorizada, a UNIÃO NACIONAL /ACÇÃO NACIONAL POPULAR - que congregava os adeptos do governo - e, de vez em quando eram toleradas, mas com fortes condicionalismos de acção, plataformas eleitorais, como o MUD, a CEUD e a CDE. Havia ainda, na clandestinidade, o Partido Comunista e o Partido Socialista. Os membros destes partidos e os seus líderes eram fortemente perseguidos, presos ou encontravam-se exilados.

Não havendo partidos com vida regular autorizada, também não poderia haver eleições democráticas - nem para a Presidência da República, nem para o Parlamento, então chamado Assembleia Nacional.

De vez em quando, porém, havia 'eleições' - nessa altura aceitavam-se as tais plataformas eleitorais - mas dificultava-se-lhes o acesso a tempos de antena, aos jornais (que eram censurados) e os comícios e sessões de esclarecimento eram dificultados, proibidos, por vezes, e outras vezes interrompidos por cargas da polícia.. Não havia eleições autárquicas nem para as Câmaras Municipais, nem para as Juntas de Freguesia. Presidentes da Câmara e Presidentes das Juntas de Freguesia eram nomeados pelo governo. Havia, nas aldeias, também uma espécie de ‘ministro’ ou prefeito, chamado «regedor», encarregado de manter a ordem e chamar a Guarda Republicana em caso de bagunça...

E quem é que votava? - Só alguns: - os chefes de família (o pai), com a 4ªclasse feita (durante muito tempo o ensino não foi obrigatório - por isso ainda há tantos analfabetos) que usufruíssem de determinado rendimento anual - isto excluía grande parte das mulheres, os pobres e os analfabetos. Podiam também votar os funcionários públicos (os quais, como foi dito antes, eram obrigados a uma declaração de fidelidade ao regime), cujo recenseamento era assegurado pelos serviços de que dependiam. Não havia acesso aos cadernos eleitorais - e por isso a oposição não podia controlar a sua correcção.

Nestas condições, as eleições não eram verdadeiramente livres nem democráticas - e na maior parte das vezes, as listas de oposição viam-se obrigadas a desistir da sua candidatura, por falta de respeito pelos seus direitose para não colaborarem numa fraude que aconteceria, inevitavelente.

As eleições mais célebres foram para a Presidência da República, em 1958 - havia o candidato de Salazar, Almirante Américo Tomás, e o da oposição, general Humberto Delgado,mais tarde conhecido por «general sem medo».
Foram as eleições mais concorridas e suspeita-se de que, apesar de todas as obstruções, o candidato da oposição ganhou. Só que os resultados eleitorais fornecidos pelo Governo foram os inversos...em parte devido ao número elevado de mortos que votaram...Não havia representantes dos candidatos a assistir à contagem...
Para evitar «problemas» e riscos destes, deixou de haver eleições do Presidente por voto directo e secreto – o Presidente passou a ser eleito por um colégio eleitoral formado por gente do regime...Assim, Américo Tomás manteve-se como presidente até 25 de Abril de 1974 .
Antes disso, o General Humberto Delgado fora barbaramente assassinado pela PIDE, a polícia secreta.
Ou seja: no que respeita a eleições (e não só) estava a fazer-se como se fazia - é sabido nos estados comunistas do Leste europeu ou ainda na China e noutros regimes de ditadura.

Actualmente - e desde o 25 de abril de 74 - como sabes, é obrigatório o recenseamento para todos os maiores de 18 anos e as eleições são absolutamente democráticas e livres. Como em todo o mundo civilizado se faz. E não há censura à imprensa, rádio e TV, nem prisões por motivos políticos.

Quero acabar citando MIGUEL DE SOUSA TAVARES:

Vai fazer 20 anos que todos os dias agradeço à Providência viver num país livre, sem censura, sem delitos de opinião, sem presos de consciência. Para os que não conheceram o regime anterior, isto pode parecer tão banal que nem chegam a entender como é que ainda há amigos de Alex* em número suficiente para se comoverem com cada 25 de abril que passa. E, contudo, a todo o passo me assalta a mesma alegria e o mesmo orgulho de viver num país onde, por exemplo, o debate sobre a guerra de África, na SIC é possível acontecer.
[....]
- in PÚBLICO,28 de Janeiro de 1994.
(continua)

Amélia Pais

* alusão a um filme com este título - protagonizado por personagens dos « sixties», saudosistas e idealistas.

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15/04/05

COISAS MINHAS -14 / 2

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TRÍPTICO

(à maneira popular...)



II
o que se sente
entre o que se pensa e diz .
o que se pensa
entre o que se sente e cala
o que se cala
entre o sentir e o ser
o que se diz
entre o que se ama e sonha



nós
no mais fundo de nós
nós perdidos
nós vazios
nós à margem

desarmados
desamados

Amélia Pais



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NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE 1 e 2


A partir de hoje,e por sugestões recebidas de vários lados, vou repor uma série de crónicas que elaborei em 1994 e continuo desde então a reelaborar - a que dei o título
NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE
- que mais não são que uma tentatica de preservar a memória futura de tempos que passaram - e que vivi/vivemos muitos de nós de perto.Possam elas servir junto dos mais novos - que os mais velhos que me lêem aqui os dêem a ler, se assim o entenderem, aos seus filhos ou netos.Porque são a maneira de lutar contra o esquecimento.
São crónicas despretensiosas - com esse único propósito.
INTRODUÇÃO:

Em 25 de abril de 1974 os portugueses acordaram de modo diferente: na rádio davam-se notícias de um 'movimento das forças armadas' (M.F.A.) que se propunha derrubar o poder autoritário e fasciszante, que governava Portugal desde 1926, e era responsável, entre outras coisas, por uma guerra colonial que poucos desejavam - da qual resltaram milhares de mortos e estropiados fÍsicos e psicológicos.Era propósito desse movimento militar democratizar - descolonizar- desenvolver o país (os três D) .
Os teus pais ou avós, provavelmente, já te falaram disso - foi um acontecimento importante para Portugal, para África, para o mundo - por isso, é feriado nesse dia.
É minha intenção, a partir de agora dar-te a conhecer aspectos de como se vivia em Portugal antes dessa 'revolução'('dos cravos', como foi chamada).São testemunhos directos de quem viveu o antes e o depois dessa data histórica.
Vamos passar a chamar estes testemunhos de


NOTÍCIAS DO ANTIGAMENTE

1 e 2. Aspectos da vida nas Escolas :

1. Não havia turmas mistas (a não ser no então chamado Curso Complementar-correspondente ao Secundário -10º. 11º e 12ºanos); os pátios de recreio também não eram mistos - as meninas iam para um dos lados, os rapazes para o outro; em muitas escolas secundárias também entravam por portas distintas, meninos, meninas e professores.

No entanto, alguns rapazes e raparigas iniciaram, na Escola onde a autora destas linhas exerceu a sua profissão, a E.S.F-R. Lobo, com o apoio de alguns professores, e já no ano de 1973/74, movimentos reivindicativos a favor dos 'pátios mistos'. Tais movimentações eram consideradas "subversivas"e poderiam ter dado origem a processos disciplinares - se nesse mesmo ano não tivesse havido o 25 de abril...

2. Em 'saraus artísticos' que os finalistas costumavam fazer, os textos a "declamar" ou representar não eram escolhidos livremente pelos alunos ou professores que os apoiavam: passavam por uma espécie de 'censura prévia' das autoridades escolares (nomeadas pelo Governo e não eleitas, como agora).

Por exemplo: uma vez foram proibidos, de Fernando Pessoa, os poemas O menino de sua mãe (fala de um jovem soldado morto na guerra) e Liberdade (em que se diz Ai que prazer/Não cumprir um dever/Ter um livro para ler/E não o fazer - Ler é maçada/Estudar é nada..).- Pobre Pessoa , censurado depois de morto!...

Razões da proibição: o 1ºpoema, sendo triste e contra a guerra, não era aconselhável num país que estava numa guerra 'patriótica' no ultramar (= colónias) ; o 2º 'parecia mal', dito
por estudantes...

Os alunos "prometeram" acatar estas decisões: - uma vez no sarau, disseram mesmo os poemas - velho gostinho do fruto proibido...Não lhes aconteceu nada, felizmente, mas houve alguma margem de risco...para os alunos - e para o(a) professor(a) responsável pelo sarau...


3.Estavam proibidas as Associações de Estudantes do Ensino Secundário - o regime temia que a agitação e a contestação estudantil, nomeadamente pela autonomia universitária e contra a guerra colonial, alastrasse aos estudantes das escolas secundárias. Quanto às associações de estudantes universitários, eram fortemente vigiadas - e algumas vezes encerradas - Havia polícias nas universidades - os estudantes designavam-nos de "gorilas"...- e fortes cargas policiais nas manifestações - muitos eram feridos e houve estudantes mortos. Momentos mais altos da contestação estudantil: - crises académicas de 1962,1965 e 1969.

4. Também os professores, como funcionários públicos que eram, tinham de fazer anualmente uma declaração de repúdio activo pelo comunismo e "outras actividades subversivas" e de lealdade ao regime. (muitos professores de mérito foram expulsos das suas escolas)
Eram proibidos sindicatos de professores - havia associações pró - sindicais, chamadas de Grupos de Estudo do Pessoal Docente - foram proibidas em Fevereiro de 1974, sob a acusação de serem associações 'secretas' e 'subversivas'.
Felizmente a proibição - que mergulhou os professores mais activos numa espécie de 'clandestinidade'- só duraria 2 meses - até 25.4.74...
Amélia Pais
(continua)
poster e autocolante da autoria de Dionísio da Ponte, então com 13 anos
- um aluno da Escola Secundária de Francisco Rodrigues Lobo (Leiria)- escola onde eu sempre leccionei

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