30/07/05

ADEUS, ATÉ AO MEU REGRESSO...

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...porque noutros lados haverá também barcos e flores...

Estarei de volta dentro de alguns dias...

Boas férias a todos!

OMNIA VINCIT AMOR -24

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chagall

Des milliers et des miliers d’années
Ne sauraient suffire
Pour dire
La petite seconde d’eternité
Où tu m’as embrassé
Où je t’ai embrassée
Un matin dans la lumière d’hiver
Au parc Montsouris à Paris
A Paris
Sur la Terre
La Terre qui est un astre.


JacquesPrévert - in Paroles



Milhares e milhares de anos
Não chegariam
Para dizer
O breve segundo de eternidade
Em que me beijaste
Em que te beijei
Numa manhã à luz do Inverno
No parque Montsouris em Paris
Em Paris
Sobre a Terra
A Terra que é um astro.

(Trad. de Amélia Pais)


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29/07/05

LER OS CLÁSSICOS - 14

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foto de João Coutinho



A SAUDADE


É a saudade uma mimosa paixão da alma, e por isso tão subtil, que equivocamente se experimenta, deixando-nos indistinta a dor da satisfação. É um mal, de que se gosta, e um bem, que se padece: quando fenece, troca-se a outro maior contentamento, mas não que formalmente se extinga: porque se sem melhoria se acaba a sau­dade, é certo que o amor e o desejo se acabarão primeiro. Não é assim com a pena; porque quanto é maior a pena, é maior a saudade, e nunca se passa ao maior mal, antes rompe pelos males; conforme sucede aos rios impetuosos, conservarem o sabor de suas águas, muito espaço de misturar-se com as ondas do mar, mais opulento. Pelo que diremos que ela é um suave fumo do fogo do amor, e que do próprio modo que a lenha odorífera lança um vapor leve, alvo e cheiroso, assim a saudade, modesta e regulada, dá indícios de um amor fino, casto e puro. Não necessita de larga ausência; qualquer desvio lhe basta, para que se conheça. Assim prova ser parte do natural apetite da união de todas as coisas amáveis e semelhantes; ou ser aquilo falta, que da divisão dessas tais coisas procede. Compete por esta causa aos racionais, pela mais nobre porção que há em nós; e é legítimo argumento da imortalidade de nosso espírito, por aquela muda ilação, que sem­pre nos está fazendo interiormente, de que fora de nós há outra coisa melhor que nós mesmos, com que nos desejamos unir; sendo esta tal a mais subida das saudades humanas, como se dissésse­mos: um desejo vivo, uma reminiscência forçosa, com que apete­cemos espiritualmente o que não havemos visto jamais, nem ainda ouvido, e temporalmente, o que está de nós remoto e incerto; mas um e outro fim, sempre debaixo das premissas de bom e deleitá­vel. Esta é em meu juizo a teórica das saudades, pelos modos que, sem as conhecer, as padecemos, agora humana, agora divinamente.


D.Francisco Manuel de Melo (s.XVII)
cit.por Eduardo Lourenço, in Portugal como destino / Mitologia da Saudade,Gradiva,1999

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OS MEUS POETAS - 33

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CARTA A MEUS FILHOS sobre OS FUZILAMENTOS DE GOYA


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,e foram sacrificados, torturados,

[espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse «com suma piedade e sem efusão de sangue.»
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto
[haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.
Acreditai que nenhum mundo que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia -
mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruiram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardamos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.


Lisboa, 25/6/1959 *

JORGE DE SENA, in Metamorfoses
* e intemporal... (A.P.)

28/07/05

ESCREVER -14

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Pablo Picasso

PORQUE ESCREVO...

«Eu sempre acreditei que era para comunicar o mais claramente possível aos que me liam e aos que me escutavam. Mesmo nos meus momentos de maior hermetismo, eu pretendi a clareza. É que sou de um país do sol, de linhas claramente desenhadas numa baía agradável,como a de Cadiz. Eu tenho a paixão do mar, das árvores e das flores nos jardins, de arquitecturas brancas. Eu sou um escritor de paz, da paz. Mas, veja, tenho dito frequentemente: nós vivemos entre a flor e a espada. Nasci no século das maiores guerras e, ao mesmo tempo, das mais maravilhosas invenções, que, em lugar de serem colocadas ao serviço da vida, são quase sempre orientadas em direcção da morte: este não é o reino da flor, é o da espada. Mas, entre a flor e a espada, eu estou do lado da flor. É por isso que, no meio das mais fortes e violentas tormentas, eu sou um pára-raios da paz».

Rafael Alberti

Fonte: LEIA, setembro de 1985

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POETAS AMIGOS - 12

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Silenciosamente

falemos sobre as pequenas coisas que nos cercam
falemos vagarosamente para que durem
um mínimo instante além do tempo que as fitamos

para as grandes coisas já dedicamos toda a nossa pressa
e ela não foi capaz de nos dar conforto
nem de solucionar os graves problemas humanos

dediquemos às pequenas coisas um olhar preguiçoso

melhor ainda
façamos um pacto de silêncio enquanto caminhamos
de mãos dadas como Ricardo e Lídia à beira do riacho
onde eu nunca me havia dado contados pés de avenca na sombra
amarela do Ipê

façamos um pacto de silêncio para ouvir os pássaros
façamos um pacto de silêncio para ouvir as águas
e os seixos que rolam no seu leito

façamos silêncio para ouvir o vento
façamos silêncio porque as palavras estão gastas
como os seixos que rolam ao sabor das circunstâncias


Fred Matos
http://fred2004.multiply.com/ ; http://fredmatos.blogspot.com/



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27/07/05

DO FALAR POESIA - 28




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Os homens não se medem pelos poemas que leram, mas talvez fosse melhor. O que é a fita métrica comparada com algo intenso? Há poemas que explicam trinta graus de uma vida e poemas que são um ofício de demolição completa: o edifício é trocado por outro, como se um edifício fosse uma camisa. Muda de vida ou, claro, muda de poema.

Gonçalo M. Tavares, in 'A Perna Esquerda de Paris'

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LER OS CLÁSSICOS -13

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o beijo-Rodin

Vivamos, minha Lésbia, e amemos,
e os murmúrios dos velhos mais severos
dêmos-lhes a todos o valor de um centavo!
Os sóis podem extinguir-se e voltar:
mas nós, uma vez que se extingue a breve luz do dia,
temos de dormir uma só noite, para sempre.
Dá-me mil beijos, depois um cento,
e mais mil, depois outro cento,
depois outros mil, e mais cem.
Em seguida, quando juntarmos muitos milhares,
misturamo-los, para que não saibamos
ou nenhum malvado possa invejar-nos,
quando souber que os beijos foram tantos.

Catulo
- trad.de Maria Helena da Rocha Pereira, in Romana.

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26/07/05

PENSAR -22


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«Viver é a actividade menos importante do homem preocupado; no entanto, nada há mais difícil de aprender; por todo o lado, encontram-se muitos instrutores das outras artes: na realidade, algumas destas artes são captadas tão intensamente por simples rapazes que assim as podem ensinar. Mas aprender a viver exige uma vida inteira e, o que te pode surpreender ainda mais, é necessária uma vida inteira para aprender a morrer.[………..]»


Séneca, in 'Da Brevidade da Vida'

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O PRAZER DE LER - 24

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imagem de oscar bluemner

"Um país é feito de Homens e Livros"
(Monteiro Lobato).

Esta frase deveria estar escrita em todas as paredes das salas de aula, em todas, desde a pré-alfabetização. Em letras garrafais. Antes mesmo da criança aprender a ler.

Al - Chaer

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25/07/05

DESASSOSSEGOS - 5

"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho, como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei".


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[.....]
Se penso, tudo me parece absurdo; se sinto, tudo me parece estranho;
se quero, o que quer é qualquer coisa em mim.
Sempre que em mim há acção, reconheço que não fui eu.
Se sonho, parece que me escrevem.
Se sinto, parece que me pintam.
Se quero, parece que me põem num veículo, como a mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.
[.....]

Bernardo Soares, L.D.
Obs.: o título desta série - Desassossegos - vem-me da leitura, sobretudo, de Fernando Pessoa e, em particular, do Livro de (todos) os Desassossegos, o de Bernardo Soares.Natural se torna, pois, que voltemos aos dois muitas vezes - a Pessoa e a Pessoa/Soares.

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24/07/05

OMNIA VINCIT AMOR - 23

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O BEIJO

Um rapaz beijou-me ontem à tarde
E o seu beijo era um vinho perfumado
Tão longamente bebi nesses lábios o vinho do amor
que ainda agora me sinto embriagada.

Anónimo - Grécia (séc. I a.c.)
Trad.Jorge Sousa Braga

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POETAS AMIGOS -11

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O dom do azul


uma palavra some
como uma gaivota húmida toca o dom do azul
o ardor de não dizer.


eu peço a minha mãe que me diga
ainda a aurora,
que me diga que na noite não se demora,
porque eu quero uma palavra
como uma grande infância, por viver.


maria gomes - maio,2005

http://romadevidro.blogspot.com/

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23/07/05

DE AMITICIA -19

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THAT’S WHAT FRIENDS ARE FOR


And I never thought I'd feel this way
And as far as I'm concerned
I'm glad I got the chance to say
That I do believe I love you

And if I should ever go away
Well then close your eyes and try
To feel the way we do today
And then if you can remember
Keep smiling, keep shining

Knowing you can always count on me, for sure
That's what friends are for
For good times and bad times
I'll be on your side forever more

That's what friends are for
Well you came in loving me
And now there's so much more I see
And so by the way I thank you

Oh and then for the times when we're apart
Well then close your eyes and know
The words are coming from my heart
And then if you can remember


[Carol Bayer Sager (lyrics) - Burt Bacharach (music);o 1º a cantar e gravar esta canção foi Rod Stewart, em 1982; outros se lhe seguiram, como Dionne Warwick, Elton John, Stevie Wonder e Gladys Knight ].

O PRAZER DE LER - 23

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Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, indubitavelmente o livro. Os outros são extensões do seu corpo. O microscópio e o telescópio são extensões da vista; o telefone é o prolongamento da voz; seguem-se o arado e a espada, extensões do seu braço. Mas o livro é outra coisa: o livro é uma extensão da memória e da imaginação.Em César e Cleópatra de Shaw, quando se fala da biblioteca de Alexandria, diz-se que ela é a memória da humanidade. O livro é isso e também algo mais: a imaginação. Pois o que é o nosso passado senão uma série de sonhos? Que diferença pode haver entre recordar sonhos e recordar o passado? Tal é a função que o livro realiza.

Jorge Luís Borges - Borges Oral

encontrado in aguarelas de turner - http://aguarelas.blogs.sapo.pt/

22/07/05

LER OS CLÁSSICOS - 12

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A UM (a) JOVEM ESCRAVO (a) *



Fosses tu ainda inocente talvez reconsiderasse antes de te falar.
Há tempos no entanto que recebes lições do teu amo
que adormece a teu lado mal o deixas satisfeito. Eu ofereço-te o
amor a terna intimidade o riso e essa suave conversa que
prolonga o acto da carne. A doce liberdade (se assim o
entenderes) de não aceitares nenhuma destas coisas.



Estratão de SardesGrécia, s.II a.C
Trad. de Jorge Sousa Braga


* Obs.:.Há dúvidas ainda sobre se o poema é A um jovem escravo - se A uma jovem escrava; sabê-lo ao certo seria importante - mas tudo, do que se sabe do poeta, e não é muito, leva a crer que o poema se dirige a um jovem escravo.

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DO FALAR POESIA - 27

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Estrela da vida inteira

Estrela da vida inteira
Da vida que poderia
Ter sido e não foi. Poesia,
Minha vida verdadeira.



Manuel Bandeira

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21/07/05

OMNIA VINCIT AMOR - 22

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O amor não deve ser apenas uma chama - deve ser também uma luz.


Henry David Thoreau

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20/07/05

DESASSOSSEGOS - 4

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MÜDE - CANSADO



Estou cansado...
Com as árvores entabulei conversas.
Com as ovelhas sofri o horror da seca.
Com os pássaros cantei nas florestas.
Amei as raparigas da aldeia.
Ergui os olhos para o Sol.
Vi o mar.
Trabalhei com o oleiro.
Engoli o pó da estrada.
Vi as flores da melancolia no campo do meu pai.
Vi a morte nos olhos do meu amigo.
Estendi a mão para a alma dos afogados.
Estou cansado...


Thomas Bernhard, Na terra e no inferno
Trad.: José A. Palma Caetano

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19/07/05

OS MEUS POETAS - 32

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The Best Time Of The Day

Cool summer nights.
Windows open.
Lamps burning.
Fruit in the bowl.
And your head on my shoulder.
These the happiest moments in the day.


Next to the early morning hours,of course.

And the timejust before lunch.
And the afternoon, andearly evening hours.
But I do love

these summer nights.
Even more, I think,than those other times.
The work finished for the day.
And no one who can reach us now.
Or ever.

Raymond Carver




As melhores horas do dia

Frescas noites de verão.
Abrir janelas.
Luzes brilhando.
Fruta no prato.
E a tua cabeça no meu ombro.
Estes os mais felizes momentos do dia.



O despontar da manhã, é claro. E a hora
Que antecede o almoço.
E a tarde, e
as primeiras horas do anoitecer.
Mas do que eu gosto mesmo

é destas noites de verão.
Ainda mais, julgo,
do que dessas outras horas.
O trabalho do dia terminado.
E ninguém que possa encontrar - nos agora.
Ou nunca.

Trad.caseira de Amélia Pais

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18/07/05

ESCREVER -13

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Sartre por Cartier Bresson


Nunca se Escreve para Si Mesmo

O escritor não prevê nem conjectura: projecta. Acontece por vezes que espera por si mesmo, que espera pela inspiração, como se diz. Mas não se espera por si mesmo como se espera pelos outros; se hesita, sabe que o futuro não está feito, que é ele próprio que o vai fazer, e, se não sabe ainda o que acontecerá ao herói, isto quer simplesmente dizer que não pensou nisso, que não decidiu nada; então, o futuro é uma página branca, ao passo que o futuro do leitor são as duzentas páginas sobrecarregadas de palavras que o separam do fim.
Assim, o escritor só encontra por toda a parte o seu saber, a sua vontade, os seus projectos, em resumo, ele mesmo; atinge apenas a sua própria subjectividade; o objecto que cria está fora de alcance; não o cria para ele. Se relê o que escreveu, já é demasiado tarde; a sua frase nunca será a seus olhos exactamente uma coisa. Vai até aos limites do subjectivo, mas sem o transpor; aprecia o efeito dum traço, duma máxima, dum adjectivo bem colocado; mas é o efeito que produzirão nos outros; pode avaliá-lo, mas não senti-lo.
Proust nunca descobriu a homossexualidade de Charlus, uma vez que a decidiu antes de ter começado o livro. E se a obra adquire um dia para o autor o aspecto de objectividade, é porque os anos passaram, porque a esqueceu, porque já não entra nela, e seria, sem dúvida, incapaz de a escrever. Aconteceu isto com Rousseau ao reler o Contrato Social no fim da vida.
Não é portanto verdade que se escreva para si mesmo: seria o pior fracasso; ao projectar as emoções no papel, a custo se conseguiria dar-lhes um prolongamento langoroso. O acto criador é apenas um momento incompleto e abstracto da produção duma obra; se o autor existisse sozinho, poderia escrever tanto quanto quisesse; nem a obra nem o objecto veriam o dia, e seria preciso que pousasse a caneta ou que desesperasse.Mas a operação de escrever implica a de ler como seu correlativo dialético, e estes dois actos conexos precisam de dois agentes distintos. É o esforço conjugado do autor e do leitor que fará surgir o objecto concreto e imaginário que é a obra do espírito. Só há arte para os outros e pelos outros.

Jean-Paul Sartre, in 'Situações II'

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POEMAS DE AMIGOS -10

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imagem:absence is illusion-AncasterLimestone



APELO

se aos teus olhos a ausência desespera
lembra dos anos tecidos destas letras
desfiadas lembra o tempo dos desejos
das palavras nuas traduzidas sem pudor
crê nas pálpebras em que guardo a nossa
ânsia em sussurros escrita e nos lábios
unidos às vésperas da saudade

Lilia Chaves

17/07/05

OS MEUS POETAS-31

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Mário Cesariny - composição



A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares.
Depois de teres dado.

Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perene
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.

Ricardo Reis

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16/07/05

DE AMITICIA -18

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Gosto dos amigos
que modelam a vida
sem interferir muito;
os que apenas circulam
no hálito da fala
e apõem, de leve,
um desenho às coisas.

Sebastião Alba - excerto

15/07/05

O PRAZER DE LER-22

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OS LIVROS


Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livrarias
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra a expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
( E, sem dúvida, sobretudo o verso )
É o que pode lançar mundos no mundo.

Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura.

Os livros são objectos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários,
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
( Talvez isso nos livre de lançarmo - nos )
Ou - o que é muito pior - por odiarmo - los
Podemos simplesmente escrever um:

Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras.
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas para mim foste a estrela entre as estrelas.


Caetano Veloso

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14/07/05

LER OS CLÁSSICOS - 11

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ELEGIA DAS FLORES


Os homens esperam viver cem anos,
Mas as flores vivem uma primavera.
Porém, num dia de vento e de chuva,
Elas podem desfolhar-se na poeira.
Se as flores soubessem afligir-se com isso,
A sua tristeza seria maior que a dos homens.



Lu Kuei Meng (Séc.IX)

in Emanuel Félix - A Viagem Possível (1965/1992) 14 poemas chineses - o chão da palavra/poesia vega 1993

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LIBERTÉ,ÉGALITÉ, FRATERNITÉ


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claude monet

Quartier libre

J'ai mis mon képi dans la cage
et je suis sorti avec l'oiseau sur la tête
Alors
on ne salue plus
a demandé le commandant
Non
on ne salue plus
a répondu l'oiseau
Ah bon
excusez moi je croyais qu'on saluait
a dit le commandant
Vous êtes tout excusé tout le monde peut se tromper
a dit l'oiseau.

Jacques Prévert, Paroles


13/07/05

OMNIA VINCIT AMOR - 21

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Escuta, preceptor do amor libertino:
Conduz os teus alunos ao meu templo.
Verão eles ali uma inscrição
cuja fama aos confins do universo
levou este conselho: Conhece-te a ti mesmo.
Só o homem que a fundo se conheça
pode amar sabiamente
porque é em relação às próprias forças
que mede cada empresa.

Ovídio

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12/07/05

POEMAS DE AMIGOS - 9

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Ao contrário de Cesare Pavese

Não é a morte que vem
nos teus olhos, mas um dia claro:
esse que me acompanha
desde o primeiro beijo,
desde a primeira hora em que
senti o aroma dos teus cabelos
molhados, o sabor do sal
na tua pele. Esses teus olhos
serenos como o voo de
um pássaro. Assim os quero
ver sempre. E neles todas
as manhãs por revelar.

Manuel A.Domingos - http://limitesdeluz.blogspot.com/

PENSAR - 21

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Michelangelo -Criação de Eva


"Cuida-te muito em fazer chorar uma mulher, pois Deus conta as suas
lágrimas.A mulher foi feita da costela do homem, não dos pés para ser
pisoteada, nem da cabeça para ser superior, senão do lado para ser igual...
debaixo do braço para ser protegida e do lado do coração para ser
amada."

Do Talmude hebraico

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11/07/05

COISAS MINHAS -19



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UNA FURTIVA LACRIMA



Desliza
suave
furtiva
uma lágrima


abre em ti
a flor
oculta
e breve

Amélia Pais



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10/07/05

DESASSOSSEGOS - 3

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Vontade de dormir


Fios de ouro puxam por mim
a soerguer-me na poeira -
Cada um para o seu fim,
Cada um para seu norte...

.........................

- Ai que saudades da morte...

.........................

Quero dormir... ancorar...

........................

Arranquem-me esta grandeza!
-Pra que sonha a beleza,
se não a posso transmigrar?...


Mário de Sá Carneiro
Paris 1913- Maio 6
in- " Mário de Sá Carneiro - Poemas"- Edições Relógio d'Água

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LER OS CLÁSSICOS - 10

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vermeer


Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
Rosto qu’ entre nós há, do mais divino
Lume, mais branca neve, ouro mais fino,
Mais doce fala, riso mais gracioso;

D’ um angélico ar, de um amoroso
Meneio, de um esprito peregrino
S’ acendeu em mim o fogo, de qu’ indino
Me sinto, e tanto mais assi ditoso.

Não cabe em mim tal bem-aventurança.
É pouco ua alma só, pouco ua vida.
Quem tivesse que dar mais a tal fogo!

Contente, a alma dos olhos água lança,
Polo em si mais deter, mas é vencida
Do doce ardor, que não obedece a rogo.



António Ferreiras.XVI
obs.: escrevi ua (uma),no v.10, por dificuldade em colocar um til sobre o u...não sei fazê-lo neste teclado.

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09/07/05

DE AMICITIA - 17

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Todos têm os seus momentos de êxtase, o seu secreto sentido da morte, qualquer coisa que lhes serve de apoio. Visitei cada um dos meus amigos, tentando com os dedos inseguros abrir os seus pequenos cofres fechados. Expus-lhes a minha dor - não, não a dor, mas o sentimento de incompreensível mistério da vida - e pedi-lhes que a examinassem comigo. Alguns procuram os sacerdotes; outros a poesia. Eu refugio-me junto dos meus amigos, vou procurar o meu próprio coração, busco qualquer coisa intacta entre frases e fragmentos, eu a quem não basta a beleza que existe na lua e nas árvores e para quem o contacto de uma pessoa com outra é tudo, mas que nem sequer isso consigo estabelecer, permanentemente imperfeito, frágil e indizivelmente solitário.


Vírginia Woolf - As Ondas

Recolhido em aguarelas de turner - http://aguarelas.blogs.sapo.pt/

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08/07/05

ESCREVER -12

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...Escrever é finalmente subscrever o ar
das ervas
e desenhar o sopro com os dedos: amar o corpo.
Amar. Dizer amar: amar o mar
na proximidade do próximo, no ombro
do teu corpo ou no parapeito da terra.

António Ramos Rosa - A (in)coerência do fogo
in : As marcas do deserto

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07/07/05

OS MEUS POETAS - 30

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Quando deponho sobre os teus dedos de frio
uma mão de grinalda e de sonhos
vejo o amanhã inscrito nos teus olhos.

Armando Artur - Moçambique -n.1962

06/07/05

POEMAS DE AMIGOS -8

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ericeira (foto de helena monteiro)


A tarde nos olhos das palavras

Perderam-se os sentires nas vagas da procura
e o mar tem contornos por definir
não o desviam as marés ou
dos humanos as crenças
vagueia ondulante e eterno
entre a costa e o infinito
no cíclico desassombro do silêncio.

Helena Monteiro - http://linhadecabotagem.blogspot.com/

05/07/05

DO FALAR POESIA - 26

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Pode ensinar-se a ler poesia?

- Como fazê-lo sem que a obrigatoriedade da leitura e do estudo se transformem em obstáculo à plena fruição do poema?

- “Claro que deve ensinar-se a ler poesia. E quem a ensina pode começar por prevenir que não comem sílabas aos versos, porque são altamente venenosas. Um poema, como Paul Valéry escreveu (Cahiers, II, Pléiade, pág. 1065), é uma longa hesitação entre som e sentido. Conta e canta, dizia outro poeta, António Machado. Portanto, a sua leitura deve fazer-se em voz alta, porque todas aquelas palavras aguardam uma voz para tomarem forma e figura. Voz que terá em conta o que é inerente ao próprio poema: tom, ritmo, acentos, pausas e até dissonâncias. Depois, sem a menor ênfase, como quem fala de amigo para amigo, quem lê deve deixar-se levar por essa música, “pura delícia sem caminho”.
Eugénio de Andrade - in “Relâmpago – Revista de Poesia” nº10, 4/2002

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OMNIA VINCIT AMOR - 20

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Dawn


To wake, and hear a cock
Out of the distance crying,
To pull the curtains back
And see the clouds flying
- How strange it is
For the heart to be loveless, and cold as these.

Aurora
Acordar e ouvir um galo
Ao longe gritando,
Afastar as cortinas
E ver as nuvens flutuando
- Como é estranho
O coração estar sem amor, e frio como isto.

Philip Larkin - Dawn

(Trad. de Amélia Pais, com a ajuda de amigos)

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04/07/05

LER OS CLÁSSICOS - 9


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DESPEDIDA DE HEITOR E ANDROMACA

Depois que assim falou, o ilustre Heitor estendeu os braços ao filho. Logo a criança se voltou aos gritos, para o seio da ama de bela cintura, assustado com o aspecto do seu amado pai,com medo do bronze e do penacho de crinas de cavalo,que via tremer, assustador, no alto do capacete.

Desatou a rir o pai querido e a mãe venerável.

Logo o ilustre Heitor retirou o capacete da cabeça e o pousou no solo, todo resplandecente.
Depois que beijou o caro filho, e o embalou nos braços,dirigiu esta prece a Zeus e aos outros deuses:

"Zeus e demais deuses, concedei-me que este meu filho venha a ser como eu, se distinga entre os Troianos,seja assim forte e governe Ílion com o seu poder. E que alguém diga: "É bem mais valente que o pai!"quando regressar do combate. Que traga os despojos sangrentos
do inimigo que abateu, para gáudio de sua mãe."

Dito isto, pôs nos braços da esposa o filhinho; ela recebeu-o no seio perfumado,entre risos e lágrimas; condoeu-se o marido ao vê-la,acariciou-a, e dirigiu-lhe estas palavras, chamando-a pelo nome:

«Louca, não te aflijas assim no teu coração!

Ninguém me lançará ao Hades contra as ordens do Destino! Garanto-te que nunca homem algum, bom ou mau,escapou ao seu Destino, desde que nasceu! Vai para casa tratar dos teus trabalhos,o tear e a roca, e dá ordem às tuas aias de fazer o seu serviço; a guerra diz respeito aos homens, a quantos nasceram em Ílion, e a mim mais que a nenhum!"



Homero - Ilíada

(tradução de Maria Helena da Rocha Pereira)

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03/07/05

O PRAZER DE LER - 21

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Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de livraria.

Jorge Luís Borges

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02/07/05

DESASSOSSEGOS - 2

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foto:Gregg A. Jennings

Pára-me de repente o Pensamento...
- Como se de repente sofreado
Na Douda Correria...em que, levado...
- Anda em Busca... da Paz...do Esquecimento...

- Pára Surpreso...Escrutador...Atento
Como pára...um Cavalo Alucinado
Ante um Abismo...ante seus pés rasgado...
- Pára...e Fica...e Demora-se um Momento...

Vem retratado na Douda Correria
Pára à beira do Abismo e se demora

E Mergulha na Noute, Escura e Fria
Um Olhar d'Aço, que na Noute explora...

- Mas a Espora da dor seu flanco estria...

- E Ele Galga...e Prossegue...sob a Espora!


Ângelo de Lima

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01/07/05

DE AMICITIA -16

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POR CAUSA DA COR DO TRIGO
[ainda]

- Ando à procura de amigos. O que é que «cativar» quer dizer?
- É uma coisa de que toda a gente se esqueceu – disse a raposa. – Quer dizer que se está ligado a alguém, que se criaram laços com alguém.
- Laços?
- Sim, laços – disse a raposa. – Ora vê: por enquanto, para mim, tu não és senão um rapazinho perfeitamente igual a outros cem mil rapazinhos. E eu não preciso de ti. E tu também não precisas de mim. Por enquanto, para ti, eu não sou senão uma raposa igual a outras cem mil raposas. Mas, se tu me cativares, passamos a precisar um do outro. Passas a ser único no mundo para mim. E, para ti, eu também passo a ser única no mundo…[...] se tu me prenderes a ti, a minha vida fica cheia de Sol. Fico a conhecer uns passos diferentes de todos os outros passos. Os outros passos fazem-me fugir para debaixo da terra. Os teus hão-de chamar-me para fora da toca, como uma música. E depois, olha! Estás a ver, ali adiante, aqueles campos de trigo? Eu não como pão e, por isso, o trigo não me serve para nada. Os campos de trigo não me fazem lembrar nada. E é uma triste coisa! Mas os teus cabelos são da cor do ouro. Então, quando eu estiver presa a ti, vai ser maravilhoso! Como o trigo é dourado, há-de fazer-me lembrar de ti. E hei-de gostar do barulho do vento a bater no trigo…

Saint-Exupéry - O Principezinho
Nota: colocar este texto é o meu modo de agradecer terem-me ensinado o significado da cor do trigo.Vai para todos os meus amigos e, em especial, para a Lídia.

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