03/04/06

O PRAZER DE LER - 41





um leitor

que outros se vangloriem das páginas que escreveram;
a mim orgulham-me as que li.
não terei sido um filólogo,
não terei inventado as declinações, os modos, a laboriosa mutação das letras,
o de que se endurece em ter
a equivalência do ge e do ka,
mas ao longo dos anos professei
a paixão da linguagem.
as minhas noites estão cheias de vergílio;
ter sabido e ter esquecido o latim
é uma posse, porque o esquecimento
é uma das formas da memória, a sua vaga cave,
a outra face secreta da moeda.
quando nos meus olhos se apagaram
as vãs aparências queridas,
os rostos e as páginas,
dei-me ao estudo da linguagem de ferro
que usaram os meus ancestrais para cantar
espadas e solidões
e agora, através de sete séculos,
desde a última thule,
chega-me a tua voz, snorri sturlson.
diante do livro , o jovem impõe-se uma disciplina rigorosa
e fá-lo atrás de um conhecimento rigoroso;
na minha idade qualquer empresa é uma aventura
que confina com a noite.
não acabarei de decifrar as antigas línguas do norte,
não mergulharei as mãos ansiosas no ouro de sigurd;
a tarefa que empreendo é ilimitada
e há-de acompanhar - me até ao fim,
não menos misteriosa do que o universo
e do que eu, o aprendiz.

Jorge Luiz Borges "elogio da sombra"

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