15/07/06

LEITURAS - 15




Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira.Certa manhã, ao deixar o metrô por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase.Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a professora me pediu para repetir a sentença.Aí estou chegando quase...havia provavelmamente algum problema com a palavra quase.Só que, em vez de apontar o erro,ela me fez repeti-lo, repeti-lo, depois caíu numa gargalhada que me levou a bater o fone. Ao me ver à sua porta teve outro acesso e quanto mais prendia o riso à boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro.Disse enfim ter entendido que eu chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada nem tinha essa graça toda. Tanto é verdade que em seguida KrisKa ficou meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos meus lábios trémulos. Hoje porém posso dizer que falo húngaro com perfeição, ou quase. Quando à noite começo a murmurar sózinho, a suspeita de um ligeiríssimo sotaque aqui e ali muito me aflige. Nos ambientes que frequento, onde discorro em voz alta sobre temas nacionais, emprego verbos raros e corrijo pessoas cultas, um súbito acento estranho seria desastroso. Para tirar a cisma, só posso recorrer a Kriska, que tão pouco é muito confiável; a fim de me segurar ali comendo em sua mão, como talvez deseje, sempre me negará a última migalha. Ainda assim, volta e meia lhe pergunto em segredo: perdi o sotaque? Tinhosa ,ela responde: pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha...E morre de rir, depois se arrepende, passa as mãos no meu pescoço e por aí se vai.

Chico Buarque - Budapeste

Etiquetas:

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com Licença Creative Commons