31/01/06

DO FALAR POESIA - 44



foto:willy ronis, Pont Royal

aula de poesia

Sentamos no banco alvo
Sob o busto de Lenau

Nos beijamos
E de passagem falamos
Sobre versos

Falamos sobre versos
E de passagem nos beijamos

O poeta vê algo através de nós
No banco alvo
No pedregulho do caminho

E silencia
Com seus belos lábios de bronze

No Parque da cidade de Vrchatz
Aprendo lentamente
O cerne da poesia


Vasko Poppa (Sérvia-1922-1991)
-tradução de Aleksandar Jovanovic

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30/01/06

PÉROLAS - 63





"Nada substitui o amor, senão a memória do amor."

Yannis Ritsos

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DA EDUCAÇÃO - 11




Se ensinares, ensina ao mesmo tempo a duvidar daquilo que estás a ensinar...

Ortega & Gasset

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29/01/06

DESASSOSSEGOS - 27

img.odile redon

«Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação de meus desejos afligidos.»

Cecília Meireles

LER OS CLÁSSICOS - 38





PASSER, deliciae meae puellae,
quicum ludere, quem in sinu tenere,
cui primum digitum dare appetenti
et acris solet incitare morsus,
cum desiderio meo nitenti
carum nescio quid lubet iocari
et solaciolum sui doloris,
credo ut tum grauis acquiescat ardor:
tecum ludere sicut ipsa possem
et tristis animi leuare curas!
Catulo




Pardal, encanto da minha amada!
Como gosta ela de folgar com ele, de o ter ao colo,
De estender a ponta do dedo ao seu bico ávido
E provocar as suas acres mordidelas -
Sempre que a ela apetece (à menina dos meus olhos!)
Dar-se a um joguinho, muito dela
E consolo da sua dor - para apaziguar,
Cuido eu, o excesso do seu ardor…
Quem dera contigo folgar, como a tua dona,
E sacudir do espírito os meus cuidados tristes!

Trad. de Maria Teresa Schiappa de Azevedo



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28/01/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 7



As rosas amo dos jardins de Adónis

As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.
Ricardo Reis.Fernando Pessoa

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OMNIA VINCIT AMOR - 43


img:Toulouse Lautrec


Deitados lado a lado, envoltos nas fadigas do dia. Paisagem fresca e calma onde passam histórias irrealizáveis, o sono repousava sobre nós. Nenhuma espada precisava de nos separar. Um peso delicioso, pesando na minha perna, despertou-me. Reconheci o teu pé. Soube então, por um homem e uma mulher que se conhecem, o que era estar deitado lado a lado.
Ernesto Sampaio in Fernanda

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27/01/06

LEITURAS-FRAGMENTOS - 2

«Ainda hoje, quando me esforço por recordar (...), a obscuridade não diminui, antes se adensa quando penso o pouco que conseguimos segurar porque todas as coisas estão constantemente a cair no esquecimento a cada vida que se extingue, o quanto o mundo como que se esvazia por a história de incontáveis lugares e objectos, em si incapazes de memória, nunca ser ouvida, nunca ser mostrada ou transmitida.»

W. G. Sebald, Austerlitz
[um livro de que gostei muito]
excerto encontrado em in http://solvstag.blogspot.com/

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QUE VIVA MOZART,O AMADO DE DEUS

Nascido em Salzburgo, há 250 anos




Mozart: andante do Trio K 496

Esta frase emerge súbita no trio saltitado,
o violino pergunta de repente numa angústia
ansiosamente pergunta (o que é resposta
agónica, prévia-

talvez que esta graciosidade tenha sido escrita
para que no salão, como nas almas, a amargurada frase
estalasse de repente: proposta, apelo, suspirar,
que explode sem estridência nem ruídos:

mas existia não-contida nem contível
tanto em Mozart
como na vida).

Esta frase - e quase se diria
discreta, envergonhada, arrependida
não volta mais senão disfarce
variações: melancolia graciosa

vulgar (tanto quanto
o pode ser neste contexto –engano
de fluida fluente fácil
música de fundo)-
insondável

Jorge de Sena, Arte de Música, 1968


Mozart no céu

NO DIA 5 de dezembro de 1791
Wolfgang Amadeu Mozart entrou no céu, como um artista
de circo, fazendo piruetas extraordinárias
sobre um mirabolante cavalo branco.
Os anjinhos atônitos diziam: Que foi? Que não foi?
Melodias jamais ouvidas voavam nas linhas suplementares superiores da pauta.
Um momento se suspendeu a contemplação inefável.
A Virgem beijou-o na testa
E desde então Wolfgang Amadeus Mozart f
oi o mais moço dos anjos.

Manuel Bandeira, Lira dos cinquent'anos

26/01/06

PENSAR - 37




A Crença é Baseada no Desejo

A influência dos nossos desejos sobre as nossas crenças é do conhecimento e da observação de todos, mas a natureza dessa influência é, em geral, muito mal interpretada. É costume supor que a massa das nossas crenças provém de alguma base racional e que o desejo é apenas uma força perturbadora ocasional. Exactamente o oposto se aproximaria mais da verdade: a grande massa de crenças pela qual somos amparados na nossa vida diária é apenas projecção do desejo, corrigida aqui e ali, em pontos isolados, pelo rude choque dos factos.

Bertrand Russell, in 'Ensaios Cépticos: Sonhos e Factos'

encontrado em http://citador.weblog.com.pt/



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25/01/06

OS MEUS POETAS - 48



Il pleure dans mon coeur


Il pleure dans mon coeur
Comme il pleut sur la ville ;
Quelle est cette langueur
Qui pénètre mon coeur ?

Ô bruit doux de la pluie

Par terre et sur les toits !
Pour un coeur qui s'ennuie,
Ô le chant de la pluie !

Il pleure sans raison

Dans ce coeur qui s'écoeure.
Quoi ! nulle trahison ?...
Ce deuil est sans raison.

C'est bien la pire peine

De ne savoir pourquoi
Sans amour et sans haine
Mon coeur a tant de peine

Paul Verlaine



Chora em meu coração


Chora em meu coração
Como chove na cidade :
Que lassidão é esta
Que invade meu coração?

Oh doce rumor da chuva
Na terra e nos telhados!
Num coração que se enfada
Oh o canto da chuva!

Chora sem razão
Neste coração exausto.
O quê! nenhuma traição?...
Este luto é sem razão.

E é bem a dor maior
A de não saber porquê
Sem amor e sem rancor
Meu coração tanto dói!

tentativa de trad.colectiva de Amélia Pais e seus amigos
[obs.Já ligeiramente alterada às 13:29...]

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DO FALAR POESIA - 43




“Só a poesia é capaz de dizer o que as próprias
coisas jamais pensaram ser na sua intimidade.”

Rainer Maria Rilke

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24/01/06

PÉROLAS - 62



Um pouco mais
e veremos florescer as amendoeiras
os mármores brilharem ao sol
o mar a ondear

um pouco mais
para nos levantarmos um pouco mais alto.

Georges Seferis


tradução: Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis
in Poemas Escolhidos, Relógio d'água

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LER OS CLÁSSICOS - 37




[Do Macbeth]

Amanhã amanhã amanhã amanhã
Rasteja em passo parco dia a dia
Até a última sílaba do tempo.
E os ontens, todos, só nos alumiam
O fim do pó. Apaga, apaga, vela
Breve!
A vida é só uma sombra móvel.
Pobre actor
Que freme e treme o seu papel no palco
E logo sai de cena. Um conto tonto
Dito por um idiota – som e fúria,signi-
ficando nada.

William Shakespeare, Macbeth
-trad. de Augusto de Campos

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23/01/06

O PRAZER DE LER - 37




"Os leitores extraem dos livros, consoante o seu carácter, a exemplo da abelha ou da aranha, que, do suco das flores, retiram, a uma o mel, a outra o veneno".

Friedrich Nietzsche
In http://mnemosyne.blog-city.com/

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22/01/06

DESASSOSSEGOS - 26





Nevoeiro

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer -
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!

Valete, Fratres.
Fernando Pessoa, Mensagem.

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OS MEUS POETAS - 47


img-mark fry

Lembrança

Só ela compreendia o som
dos meus silêncios. Temia
às vezes que o tempo hostil
fugisse enquanto conversávamos.
Depois disso esvaiu-se-me a memória
e vejo-me agora a falar
dela contigo, entre espirais de fumo
que anuviam a nossa comoção.
Esta é a parte de mim que encontro
mudada: o sentimento, em si, informe,
neste agora que é apenas saudade.

Eugenio Montale
-tradução de Ivo Barroso

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LEITURAS - FRAGMENTOS - 1



[...]As crianças não entendem a idade, para elas quarenta anos ou oitenta é a mesma desgraça. Uma vez ouvi nas escadas a Maria a perguntar à avó dela se era velha. Ela disse que não, e a Maria perguntou se o avô era velho e a avó respondeu que não. Então a Maria perguntou: «Mas os velhos não existem?», e levou uma estalada. Eu entendo os anos das pessoas, mas os de Rafaniello, não. Pela cara tem cem anos, pelas mãos quarenta, pelos cabelos vinte, todos ruivos e emaranhados. Pelas palavras não sei, fala pouco numa voz fina. Canta numa língua estrangeira, quando varro o canto dele faz-me um sorriso e as rugas e as sardas mexem-se, parece o mar quando lhe chove em cima. [...]


Erri De Luca, in Montedidio

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21/01/06

CAMONIANAS - 9



cantiga a este mote seu


Da alma e de quanto tiver
quero que me despojeis,
contando que me deixeis
os olhos para vos ver.

volta

Cousa este corpo não tem
que já não tenhais rendida;
despois de tirar-lhe a vida,
tirai-lhe a morte também.
Se mais tenho que perder,
mais quero que me leveis;
contanto que me deixeis
os olhos para vos ver.

Luís de Camões - Rimas

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ESCREVER - 29



O Bom Escritor

Todos os bons livros se assemelham no facto de serem mais verdadeiros do que se tivessem acontecido realmente, e que, terminada a leitura de um deles, sentimos que tudo aquilo nos aconteceu mesmo, que agora nos pertencem o bem e o mal, o êxtase, o remorso e a mágoa, as pessoas e os lugares e o tempo que fez. Se conseguires dar essa sensação às pessoas, então és um bom escritor.
Ernest Hemingway, in 'Escrito de um Velho Jornalista (Esquire, 1934)

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20/01/06

DESASSOSSEGOS - 25




Passamos pelas coisas sem as ver

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.



Eugénio de Andrade

(nascido em 19 de janeiro)

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LER OS CLÁSSICOS - 36



Cantiga

Entre tamanhas mudanças,
Que coisa terei segura?
Duvidosas esperanças
Tão certa desaventura.

Venham estes desenganos
Do meu longo engano, e vão,
Que já o tempo e os anos
Outros cuidam que me dão.J
Já não sou para mudanças,
Mais quero uma dor segura.
Vá crê-las, vãs esperanças,
Quem não sabe o qu'aventura.


Bernardim Ribeiro -s.XVI

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19/01/06

DE AMICITIA - 36



Poema da Amiga

Amiga, se eu pudesse ser livre
e não ter nada,
Nem mesmo o desejo de
não ter nada.
Nem mesmo a consciência
de ti, nem mesmo
O humilde silêncio das coisas
que passam!
Amiga,
Esta bruma da manhã
é irredutível como o meu desejo
de expressá-la.
Toda bruma e todas as coisas
são irredutíveis
A tudo que não seja a mais
impossível pobreza.

Helio Pellegrino

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POEMAS COM ROSAS DENTRO - 6



Esplende a rosa

Esplende a rosa, a rosa
na ponta do caule de espinhos,
em seu destino de flor.

Lúbricas pérolas cintilam
nas pétalas, trêmulas,
na cálida manhã.

O orvalho umedece a rosa
e a lágrima a face rósea.
Ao balanço do vento,
a dúvida na balança:
colher a lágrima da flor
ou o orvalho de teu rosto?


Fausto Rodrigues Valle - um dos poetas meus amigos
- do livro A Fonte do Sal

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18/01/06

PENSAR - 36


" As nuvens avolumam-se por cima do claustro e a noite pouco a pouco encobre as lajes onde está inscrita a moral com que se dota aqueles que morreram. Se eu escrevesse aqui um livro de moral, teria cem páginas e noventa e nove estariam em branco. Na última, escreveria: "Eu apenas conheço um único dever, que é o de amar." E quanto ao resto, digo não. Digo não com todas as minhas forças. As lajes dizem-me que é inútil e que a vida é como "col sol levante, col sol cadente". Mas não vejo o que a inutilidade retira à minha revolta e sinto muito bem o que a faz aumentar. "


Camus Primeiros Cadernos

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OMNIA VINCIT AMOR - 42


chagall - lovers



À sombra de meus cabelos
meu amado adormeceu,
- irei acordá-lo eu?
Penteava eu meus cabelos
com cuidado cada dia
e o vento os espargia
até roubar-me os mais belos,
e ao seu sopro e sombra deles
meu amado adormeceu,
- irei acordá-lo eu?
Diz-me ele que lhe dá pena
eu ser em extremo ingrata,
que lhe dá vida e o mata
esta minha cor morena;
chamando-me sereia amena
junto a mim adormeceu,
- irei acordá-lo eu?

Poesia de tipo tradicional
- in Antologia da Poesia Espanhola das Origens ao século XIX ; tradução de José Bento-Assírio e Alvim

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17/01/06

DO FALAR POESIA - 42



A lição de estética


«Mas que beleza há na poesia?»
Escuta, quando vês um grande amigo
rodeado de mulheres, quando estás
fascinado com a orquestra, e sob o reflector
resplandecem as cores de uma deusa
que desce seminua à plateia,
onde tu estremeces, escondido
em toda aquela multidão!, quando em noite
escura e serena amigos dançam sem mulheres
numa praça ao som de um
acordeão e tu ficas à parte; pois bem, isso
não é belo para ti? Também é belo
para um velho que se chama
crítico e acha beleza em muitas coisas
e que até se aventurou a descobrir no mundo
e talvez fora do mundo, coisas cada vez
mais belas, mas que diz, com amor: «que belo
é este poema!» E tu,
tu olhas-me sem sequer me dares um beijo?


Sandro Penna - No brando rumor da vida

-ed.Assírio e Alvim .2003

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ESCREVER - 28



Dar Significado ao Tempo

Um dos prazeres humanos menos observados é o de preparar acontecimentos à distância, de organizar um grupo de acontecimentos que tenham uma construção, uma lógica, um começo e um fim. Este é quase sempre apercebido como um acme sentimental, uma alegre ou lisonjeira crise de conhecimento de si próprio. Isto aplica-se tanto à construção de uma resposta pronta como à de uma vida. E o que é isto, senão a premissa da arte de narrar? A arte narrativa apazigua precisamente esse gosto profundo. O prazer de narrar e de escutar é o de ver os factos serem dispostos segundo aquele gráfico. A meio de uma narrativa volta-se às premissas e tem-se o prazer de encontrar razões, chaves, motivações causais. Que outra coisa fazemos quando pensamos no nosso próprio passado e nos comprazemos em reconhecer os sinais do presente ou do futuro? Esta construção dá, em substância, um significado ao tempo. E o narrar é, em suma, apenas um meio de o transformar em mito, de lhe fugir.

Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver'
in http://citador.weblog.com.pt/arquivo/158244.html

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16/01/06

POETAS AMIGOS - 30




às vezes basta uma palavra

às vezes basta uma palavra : árvore
e ouço a música dos ramos
correndo transparente
como um rio azul


a sua voz é água
um violino puro


coroado de vento
e
nuvens


maria azenha

http://ardeoazul3.blogspot.com/

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PÉROLAS - 61



Aquele que acredita no girassol não meditará dentro de casa.
Todos os pensamentos de amor serão os seus pensamentos.


René Char

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15/01/06

LER OS CLÁSSICOS - 35


egon schielle-amantes

Beijai-me agora, e muito, e outra vez mais,
Dai-me um de vossos beijos saborosos
E depois, dai-me um desses amorosos
E eu pagarei com brasa os que me dais.

Virei vos socorrer, se vos cansais,
Com mais dez beijos longos, langorosos,
E assim, trocando afagos tão gostosos,
Gozemos um do outro, em calma e paz.

Vida em dobro teremos, sendo assim;
Eu viva em vós e vós vivendo em mim.
Deixai que vague, pois, meu pensamento:

Não dá prazer viver bem-comportada;
Bem mais feliz me sinto, e contentada,
Quando cometo algum atrevimento.

Louise Labbé-1524-1566

Nota: sobre esta autora,ver entre outras páginas,- http://www.aei.ca/~anbou/labe.html

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14/01/06

COISAS MINHAS - 20


foto de catedral
(http://catedral.weblog.com.pt/)


Inexorável a lua



Leve
(inexorável )
a lua

se
eleva

breve


Caminho
do infinito


Amélia Pais

________________

Nota:
Há precisamente um ano surgiu o meu «ao longe os barcos de flores». Hoje não é meu - mas nosso. Estou feliz com as visitas que tive e os amigos que encontrei a bordo. Acima, acima, gageiro/acima ao mastro real...

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13/01/06

PENSAR - 35



A Habilidade Específica do Político

A habilidade específica do político consiste em saber que paixões pode com maior facilidade despertar e como evitar, quando despertas, que sejam nocivas a ele próprio e aos seus aliados. Na política como na moeda há uma lei de Gresham; o homem que visa a objectivos mais nobres será expulso, excepto naqueles raros momentos (principalmente revoluções) em que o idealismo se conjuga com um poderoso movimento de paixão interesseira. Além disso, como os políticos estão divididos em grupos rivais, visam a dividir a nação, a menos que tenham a sorte de a unir na guerra contra outra. Vivem à custa do «ruído e da fúria, que nada significam». Não podem prestar atenção a nada que seja difícil de explicar, nem a nada que não acarrete divisão (seja entre nações ou na frente nacional), nem a nada que reduza o poderio dos políticos como classe.

Bertrand Russell, in 'Ensaios Cépticos: A Necessidade do Ceptcismo Político'

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DESASSOSSEGOS - 24

img-costa pinheiro


Opiário
(excertos)



Ao Senhor Mário de Sá-Carneiro


É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure até que adoeça,
Já não encontro a mola pra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos de ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões de cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.
[...]

Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só o cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

E fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure,
Mas é impossível que esta vida dure,
Se nesta viagem nem houve procelas!

A vida a bordo é uma coisa triste,
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.

Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?

[...]

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.
[....]

Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.
[...]

Escrevo estas linhas. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O facto é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos pra existir.
Não há gente como esta pra estar feita
Com a Tranquilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho. A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira.
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas pra dormir e pra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.
Queria outro ópio mais forte pra ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O facto essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.
[...]

Porque isto acaba mal e há-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá prò fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.
[...]

Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais prò centro.
Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraía os outros, os tais sãos.

O absurdo, como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se.
A minha vida mude-a Deus ou finde-a...

Deixe-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci pra mandarim de condição,
Mas falta-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída
Prà cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais do que fumar a vida.

E afinal o que quero é fé, é calma,
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas -
E basta de comédias na minh'alma!


No Canal de Suez, a bordo.

Álvaro de Campos.Fernando Pessoa
1ª publ. em Março de 1914

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12/01/06

SÓ EM CONTRAPONTO a Ler Os clássicos 34





bom conselho


Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade

Chico Buarque de Hollanda

Mas…estes bons conselhos não trarão, certamente, a tal «vida folgada« de que falava D-João Manuel -…a cada um a sua escolha

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POEMAS COM ROSAS DENTRO - 5



[especial para a soledade, pelo nocturno com gatos ]


Para as rosas, escreveu alguém,
o jardineiro é eterno.
E que melhor maneira de ferir o eterno
que mofar das suas iras?

Eu passo, tu ficas;
mas eu não fiz mais que florir e aromar,
servi a donas e a donzelas,
fui letra de amor,ornei a botoeira dos homens, ou expiro no próprio
arbusto, e todas as mãos, e todos os olhos me trataram
e me viram com admiração e afeto.

Tu não, ó eterno;
tu zangas-te, tu padeces, tu choras, tu afliges-te!
A tua eternidade não vale um só dos meus minutos.


Machado de Assis

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11/01/06

DO FALAR POESIA - 41


Falar/dizer Poesia

Tenho para mim que ler poesia com a voz não pode ser nunca só conhecê-la e dá-la a conhecer. Ler poesia é torná-la nossa, que a voz, tanto como os olhos, quer se queira quer não, é espelho da alma. Ler poesia é como representar, é inventar quem fala, é reinventar um poeta e recriar o momento de escrever. Por isso é importante escolher o que se lê, não ler qualquer coisa, amar o que se diz, decidir que palavras vão passar a fazer parte de nós e serão daí em diante também nossa memória e nos irão ajudar também a escrever e a ler novas palavras, a estar com os outros.


Luís Miguel Cintra
- actor, encenador,Prémio Pessoa 2005

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LER OS CLÁSSICOS - 34



Regra sua pera quem quiser viuer em paz.


Ouue, ve & calla
& viueras vida folgada:
tua porta çerraras
teu vezinho louaras
quanto podes nam faras
quãto sabes nã diras
quãto ver nã julgaras
quãto oues nã creras
se queres viuer em paz
seys cousas sempre ve
quando falares te mando
de que fallas onde & que
& a que como e quando
nunca fyes ne perfyes
ne a outro enjuries
nõ estes muyto na praça
ne te rryas de quem passa
seja teu todo o que vestes
a rrybaldos
(1) nam doestes(2)
nem caualgaras em potro.
Nem ta molher gabes a outro
nom cures de ser picam (3)

nem trauar contra rrezam
assy lograras tas caãs
cõ tuas queixadas sãs.

D.Joam Manoel -S.XV-XVI
in Cancioneiro Geral de Garcia de Resende

(1) velhacos
(2) ofendas, injuries
(3) valente

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10/01/06

POETAS AMIGOS - 29



O céu sempre azul da Grécia

A cabeça dói. O estômago agita-se.
Longe a poesia, quase tão longe
como quando as armas rompem
e as musas emudecem.
Da alegria nascem?
Ou da dor as canções?
Nascem. No entulho, na podridão
nascem. E sempre o sol as queima,
e reina, no límpido horizonte,
e a doença e a corrupção e a morte
imortal, miopia apenas.

Aurélio Porto
[ inédito em livro - publicado na revista DiVersos-1 ]

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PENSAR - 34

Vantagem do Saber


Não existe ocupação tão agradável como o saber; o saber é o meio de nos dar a conhecer, ainda neste mundo, o infinito da matéria, a imensa grandeza da Natureza, os céus, as terras e os mares. O saber ensinou-nos a piedade, a moderação, a grandeza do coração; tira-nos as nossas almas das trevas e mostra-nos todas as coisas, o alto e o baixo, o primeiro, o último e tudo aquilo que se encontra no meio; o saber dá-nos os meios de viver bem e felizmente; ensina-nos a passar as nossas vidas sem descontentamento e sem vexames.

Cícero, in 'Disputas Tusculanas'
In http://citador.weblog.com.pt/

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09/01/06

O PRAZER (e o risco) DE LER - 36


img. de FahrenHeit 451-Ray Bradbury/Truffaut


A queima dos livros


Quando o regime ordenou que fossem queimados publicamente
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda a parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista dos livros queimados
Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder.
Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas!
Não me deixem de lado! Eu não
Relatei sempre a verdade em meus livros?
E agora tratam-me
Como um mentiroso! Eu lhes ordeno:
Queimem-me!


Bertolt Brecht

trad. por Paulo César de Sousa, Editora 34.

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OMNIA VINCIT AMOR - 41


chagall

Melodia

Este é o orvalho dos teus olhos.
Esta é a rosa dos teus vales.
O silêncio dos olhos está no silêncio das rosas.
Tu estás no meio,
entre a dor e o espanto da treva.
Arrancas-te ao mundo e és a perfumada
distância do mundo.
Chego sem saber, à beira dos séculos.
Despenho-me nos teus lagos quando para ti
canta o cisne mais triste.
O pólen esvoaça no meu peito, junto às tuas
nuvens.
Esta é a canção do teu amor.
Esta é a voz onde vive a tua canção.
As tuas lágrimas passam pela minha terra
a caminho do mar.

José Agostinho Baptista

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08/01/06

PÉROLAS - 60




Sobre um oceano
de campainhas
subitamente
flutua outra manhã

Giuseppe Ungaretti
- tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti

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DE AMICITIA - 35




Amigo é...

Difícil querer definir amigo.
Amigo é quem te dá um pedacinho do chão, quando é de terra firme que você precisa, ou um pedacinho do céu, se é o sonho que te faz falta.
Amigo é mais que ombro amigo, é mão estendida, mente aberta, coração pulsante, costas largas. É quem tentou e fez, e não tem o egoísmo de não querer compartilhar o que aprendeu. É aquele que cede e não espera retorno, porque sabe que o ato de compartilhar um instante qualquer contigo já o realimenta, satisfaz.
É quem já sentiu ou um dia vai sentir o mesmo que você. É a compreensão para o seu cansaço e a insatisfação para a sua reticência.É aquele que entende seu desejo de voar, de sumir devagar, a angústia pela compreensão dos acontecimentos, a sede pelo "por vir". É ao mesmo tempo espelho que te reflete, e óleo derramado sobre suas águas agitadas. É quem fica enfurecido por enxergar seu erro, querer tanto o seu bem e saber que a perfeição é utopia. [….]
Amigo é aquele que te diz "eu te amo" sem qualquer medo de má interpretação: amigo é quem te ama "e ponto". É verdade e razão, sonho e sentimento.
Amigo é pra sempre, mesmo que o sempre não exista.

Marcelo Batalha

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