31/08/06

NOCTURNOS - 13



Ao longe, ao luar,
No rio uma vela
Serena a passar,
Que é que me revela?

Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.

Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.

Fernando Pessoa

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30/08/06

DE AMICITIA - 44





Vou dizer-te o que saboreei hoje entre os escritos de Hécaton: "perguntas-me, diz ele, que progressos é que fiz? Respondo: comecei a ser amigo de mim". Cá por mim, digo que quem fala assim progrediu muito e nunca mais estará sozinho. Fixa bem dentro de ti que o "amigo" de que ele fala existe para toda a gente.
Séneca - Cartas a Lucílio - VI,7.

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29/08/06

OS MEUS POETAS - 57



Eurídice

Lançaste-me então para trás,
eu que podia ter caminhado com as almas vivas
sobre a terra,
eu que poderia ter dormido entre flores vivas
por fim;

então pela arrogância
pela tua truculência fui lançada para trás
para onde o líquen morto escorre
escórias mortas sobre musgos de cinza

então pela tua arrogância
estou por fim despedaçada,
eu que vivo inconsciente,
que fui quase esquecida;

se me tivesses deixado esperar
teria crescido a indiferença
para a paz,
se me tivesses deixado repousar com os mortos
ter-me-ia esquecido de ti
e do passado

Ezra Pound

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22/08/06


...mas por poucos dias...

POETAS AMIGOS - 39




Movimento


"Where has the tree gone, that locked
Earth to the sky?" - Philip Larkin


Falamos de nós mesmos, da paisagem
em redor e do céu do estio
onde pusemos um deus para além
da terra.

Enquanto isso, o metrónomo
vai convertendo folhas já escritas
em novas folhas brancas
onde outros olhos gravam
imagens repetidas,
o mesmo céu azul e o amor igual,

Deus e
Berenice que se esfumam como nós.

Nuno Dempster

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21/08/06

DE AMICITIA - 43






Um amigo

Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens.Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz onde esse abraço se deu, forte e repousante. Que belo e natural é ter um amigo!
Coimbra, 4 de Fevereiro de 1935 / Diário - Miguel Torga

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LER OS CLÁSSICOS - 51




Vós olhais as flores no meio das folhas:
Quanto tempo de bom podem elas ter?

Hoje temem que alguém as colha
Amanhã aguardam que alguém as varra

Cativantes os entusiasmos do coração
Após vários anos envelhecem

Comparado com o mundo das flores
O fulgor do vermelho como o conservar?


Han Shan
,China, s.VII
Versão de Ana Hatherly.

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20/08/06

LEITURAS- 19



[....]
- Nunca a lamentes - disse a mulher, colocando a voz, calma e friamente -, tu não tens nenhuma razão. Partiu. Vai voltar. Também precisa de se distrair. Não sejas tão egoísta.
- Que sozinha deve estar - sussurrou Ákos, fixando em frente -, que sozinha.
- Volta amanhã - disse a mulher, afectando indiferença. - Amanhã à noite, já cá está. Então, não vai sentir-se sozinha. Vá, deita-te.
- Tu não compreendes - respondeu o velho, com animosidade. - Não falo disso.
- Então, de quê?
- Do que me dói aqui, aqui - e batia no coração. - Do que tenho aqui. Disto, aqui. De tudo.
- Vem dormir.
- Não durmo - disse Ákos, desafiador. - Por isso é que não durmo. Agora quero, finalmente, falar.
- Pois fala.
- Nós não a amamos.
- Quem?
- Nós.
- Como podes dizer isso?
- É assim - gritou Ákos, e bateu na mesa, como antes. - Odiamo-la. Detestamo-la.
- Endoideceste? - gritou a mulher, que continuava deitada na cama.

E Ákos, para desconcertar ainda mais mulher, escandalizá-Ia,mesmo, levantou o tom de voz, que se partia, esganiçado.
- O que desejávamos era que ela não estivesse aqui, como agora. E nem havíamos de lamentar se a pobre, neste preciso ins­tante...
Não pronunciou a palavra terrível. Mais, assim, ainda era mais terrível do que se tivesse pronunciado. […..]
Ákos continuou:
- Pois não seria melhor assim? Também para ela, pobrezinha.
E mesmo para nós. Saberás o que ela sofre? Só eu sei, só o meu coração de pai sabe. Assim e assado, é como bichanam perma­nentemente nas suas costas, dizem mal dela, fazem pouco. E nós, mãe, o que nós já sofremos. Um ano, dois anos, esperámos, tivemos esperanças, o tempo passou. Julgávamos que era, sim­plesmente, fruto do acaso. Dizíamos que tudo havia de terminar bem. Mas é cada vez pior. Será cada vez pior, e pior, ainda.
- Porquê?
- Porquê? - perguntou também Ákos, e disse, numa voz surda:
- Porque é feia.
[……]
Deszo Kosztolányi , Cotovia – ed.D.Quixote, 2006

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19/08/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 21

foto de augusto mota

a rosa é um ritual estranho à felicidade
a rosa não é a flor nem o relâmpago dos sentidos todos
a rosa mentiu ao tempo
a rosa deixa no branco a impureza do destino impermeável à dor
a rosa escorre em latejos de pavor rubro
a rosa deita-se ao lado do outro e adormece longe
a rosa foi um poema

Jorge Pereira
In http://extensamadrugada.blogspot.com/

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ESCREVER - 38


Marina Tsétaieva


[...] Eu não vivo para escrever poemas, escrevo para poder viver. ( Quem é que pode fazer da escrita dum poema um fim em si?) Escrevo não porque sei, mas para conseguir saber. Enquanto não escrever sobre uma coisa ( olhar para ela) essa coisa não existe. O meu modo de conhecer manifesta-se através da expressão - ou seja o conhecimento sai-me debaixo da caneta. Enquanto não escrever uma coisa, não penso nela.[...] Tal como a Sibila que só sabe como as palavras lhe surgem. A Sibila sabe de imediato. A palavra é o que pressupõe a coisa em nós. A palavra é o pathos da coisa, e não algo que se justifique por si. ( Se elas fossem apenas isso, bastar-nos-iam as palavras e não teríamos necessidade das coisas. Mas a nossa meta final são as coisas) [...]
- excerto da carta de Marina Tsétaieva para Boris Pasternak em 11 de Maio de 1927 - in "Correspondência a três" - Rilke/ Pasternak/ Tsétaieva (edição Assírio & Alvim,2006)

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18/08/06

OMNIA VINCIT AMOR - 56



Queima o sangue um fogo de desejo,
de desejo a alma é ferida,
dá-me os teus lábios, o teu beijo
é o meu vinho e minha mirra.
Reclina para mim a cabeça
ternamente, faz que eu durma
sereno até que sopre um dia alegre
e se dissipe a névoa nocturna

A. Púchkin

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17/08/06

NOCTURNOS - 12



De ‘Os Hinos à Noite’


De entre os seres vivos que têm o dom da sensibilidade haverá algum que não ame, mais do que todas as aparições feéricas do extenso espaço que o rodeia, a luz, em que tudo rejubila as suas cores, os seus raios, as suas vagas; e a suave omnipresença do seu dia que desponta? Como se fora a alma mais íntima da vida, respira-o o gigantesco orbe dos astros sem repouso, que flutua dançando no seu fluxo azul – respira-a a pedra faiscante, em sempiterna paz, as plantas sugadoras e meditativas, e os animais selvagens e ardentes, de tão várias figuras – todavia, mais do que todos, respira-a o excelso Estrangeiro, de olhar pensativo, passos incertos, lábios docemente apertados e repletos de harmonias. Como um rei da terrestre Natureza, ela convoca todas as potências para inúmeras transformações, prende e desprende perenes vínculos e envolve todos os seres terrenos na sua celeste imagem. Somente pela sua presença desvela toda a maravilha dos impérios do mundo.

Para além me volto, para a sacra, a indizível, a misteriosa noite. Longínquo, o mundo jaz – decaído para uma funda cripta – e ermo e solitário é o seu lugar. Nas cordas do peito sopra uma profunda nostalgia. Em gotas de orvalho me quero deixar afundar e misturar-me com a cinza. Longes da memória, anelos da juventude, sonhos da infância e os breves regozijos e esperanças vãs de toda uma vida tão longa vêm, com as suas vestes cinzentas como a névoa da tarde após o sol posto. A luz descerrou noutros espaços os seus álacres panais. Pois não havia ela de regressar para junto dos seus filhos, que a esperavam há muito com a fé da inocência?


[...]


Novalis-exc.do 1º Hino à Noite
trad. de Fiama Hasse Pais Brandão - Assírio e Alvim,1988

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16/08/06

DO FALAR POESIA - 53


Klimt-a poesia

A poesia é a arte de materializar sombras e de dar existência ao nada.

Edmund Burke

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15/08/06

LER OS CLÁSSICOS - 50



Do Sermão da Montanha

«Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados os que choram porque serão consolados.
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.
Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição, por causa da justiça, porque deles é o reino dos Céus.
Bem-aventurados sereis quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por Minha causa.
Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa recompensa nos Céus; porque também assim perseguiram os profetas que vos precederam.

Dos Evangelhos - Novo Testamento

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14/08/06

PÉROLAS - 84




Rumor de água


Rumor de água,
na ribeira ou no tanque?

O tanque foi na infância
minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão.

Rumor de água
no tempo e no coração.

Rumor de nada.

Carlos de Oliveira - in Colheita Perdida

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13/08/06

LEITURAS -18




"Levou-me ao quarto, que cheirava intensamente a tabaco, tirou um livro, folheou, procurando a página, e leu: "Esta aqui também é boa, muito boa", disse, "ora oiça só a frase: 'Devíamos orgulhar-nos de sofrer - todo o sofrimento é lembrança da nossa elevada categoria.' Lindo! Oitenta anos antes de Nietzsche! Mas não é este o dito de que eu estava a falar - espere aí - pronto, está aqui. É assim: 'A maioria das pessoas não querem nadar antes de saber.' Não tem piada? É óbvio que não querem nadar! Pois se nasceram para a terra, e não para a água! E é óbvio que não querem pensar! Pois aquele que pensa, aquele que tudo centra no pensar, pode realmente ir muito longe nesse campo, mas para todos os efeitos trocou a terra pela água, e um dia há-de ir ao fundo".
[
Hermann Hesse

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12/08/06

O PRAZER DE LER - 49


img.de evene.fr


"Eu sou parte daquilo que li"

John Kieran

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PÉROLAS - 83





Poema Azteca

Até o jade se parte,
até o ouro se dobra,
até a plumagem de quetzal se despedaça...
Não se vive para sempre na terra!
Duramos apenas um instante!

versão de Herberto Hélder

in Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001

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11/08/06

ESCREVER - 37



Escrever: tentar meticulosamente reter algo, causar que algo sobreviva; arrancar alguns pedaços precisos do vácuo à medida que ele cresce, deixar algures um sulco, um traço, uma marca ou alguns poucos sinais.
Georges Perec

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10/08/06

Guerra


pormenor de Guernica- Picasso


O dedo tremente de uma mulher
Vai percorrendo a lista das baixas
No entardecer do primeiro dia de neve.

A casa é fria e a lista longa.

Todos os nossos nomes lá estão.



Charles Simic
trad-der José Lima -in DiVersos nº 2


PENSAR - 48




O que enobrece o homem não é o seu acto, mas o seu desejo.


Robert Browning (1812-1889)

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09/08/06

DESASSOSSEGOS - 40



O Anjo Perplexo

Não houve nunca deus, nem virgens, nem santos,
nem ícone que proteja, nem oração que console;
nunca houve milagre ou prodígios,
nem salvação da alma ou vida eterna;
nem mágicas palavras, nem bálsamo eficaz
contra a dor que nunca se atenua;
nem luz do outro lado das sombras,
nem saída do túnel, nem esperança.
Só nos acompanha nesta travessia
um anjo da guarda perplexo que suporta
uma vida de cão igual à nossa.

Amalia Bautista
Trad. de Luís Januário
In a natureza do mal - http://www.anaturezadomal.blogspot.com/

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08/08/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 20


foto de améliapais

A uma rosa

Ontem nasceste, e morres amanhã.
Para tão breve ser, quem te deu vida?
Para viver tão pouco estás luzida
e para não ser nada estás louçã?

Se te enganou a formosura vã,
bem depressa a verás desvanecida,
porque em tal formosura está contida
a sina de morreres tão de manhã.

Há-de cortar-te uma robusta mão,
que é lei da agricultura permitida
e num sopro extinguir-se a tua sorte.

Não saias, que te assaltam de roldão.
Dilata o nascimento à tua vida
Que antecipas teu ser com tua morte.

Luís de Gôngora (1561-1627)
Trad. de David M.Ferreira
In Vozes da Poesia Europeia,vol.II

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07/08/06

LEITURAS -17


José Cardoso Pires

Alexandra tinha que ir. Regressar a Lisboa, ao seu gabinete, ao novo pessoal, novas reuniões. A mãe ouvia-a, recostada na cadeira, o braço estendido sobre a mesa. Nem uma palavra. Juntava migalhas, juntava-as como quem fazia paciências, e algures no pátio, no freixo certamente, cantava um melro. Alexandra lembrou-se de que os melros tinham uma fidelidade muito especial aos lugares, como lhe explicara em menina o tio Berlengas. Todos os anos havia um melro naquele freixo.


José Cardoso Pires - excerto de Alexandra Alpha, 1987

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06/08/06

CAMONIANAS -19


turner

[……]

Oh! Grandes e gravíssimos perigos,
Oh! Caminho de vida nunca certo,
Que, aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!

No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

Lusíadas,I,105-106

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05/08/06

PÉROLAS - 82




«Quem a alegria beija no romper do dia
vive no coração da eternidade.»


William Butler Yeats

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04/08/06

LER OS CLÁSSICOS - 49



Antre mim mesmo e mim
nam sei que s'alevantou,
que tam meu imigo sou.

Uns tempos com grand'engano
vivi eu mesmo comigo;
agora no mor perigo
se me descobre o mor dano.
Caro custa um desengano
e, pois m'este nem matou,
quam caro que me custou!

De mim me sou feito alheo;
antr'o cuidado e cuidado
está um mal derramado
que por mal grande me veo.
Nova dor, novo receo
foi este que me tomou:
assi me tem, assi estou.

Bernardim Ribeiro -S.XVI

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03/08/06

ESCREVER - 36



Eu escrevo não para que altere qualquer coisa. Não altera nada...porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro.

Clarice Lispector

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02/08/06

PÉROLAS - 81




«Pés para que os quero
Se tenho asas para voar.»

Frida Kahlo -Diário. 1953

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01/08/06

NOCTURNOS - 11



Já não conheço a noite, terrível anonimato da morte
No porto da minha alma ancora uma frota de astros.
Estrela da tarde, sentinela a refulgir na brisa
Celeste de uma ilha que me sonha
A proclamar de seus altos rochedos a alvorada
Meus dois olhos num abraço te acolhem com o astro
Do meu vero coração: Já não conheço a noite.

Já não conheço os nomes de um mundo que me nega
Leio as conchas, as folhas, os astros com clareza
Meu ódio é supérfluo nos caminhos do céu
A menos seja o sonho vendo-me cruzar de novo
Com lágrimas o mar da imortalidade.
Estrela do mar, sob o arco dourado de teus fogos
Já não conheço a noite que é só noite.

Odysseus Elytis

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