30/09/06

PENSAR - 52



Melhor Servir que Mandar Despoticamente

Se a servidão sempre corrompe, corrompe menos o escravo do que o senhor, excepto quando é levada até ao embrutecimento. No plano moral, é melhor para um ser humano sofrer coerções, mesmo se emanam de um poder arbitrário, do que exercer sem controle um poder dessa natureza.

John Stuart Mill, in 'A Servidão das Mulheres'
[ http://citador.weblog.com.pt]

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29/09/06

PÉROLAS - 87


magritte

Canto do Sonho

Lá onde acaba a montanha,nos cimos, nem eu sei onde,
vagueei por onde a minha cabeça e o meu coração pareciam

[ perdidos,
vagueei ao longe.

Índios Papagos (América do Norte)
Trad. de Herberto Hélder
in Rosa do Mundo – 2001 Poemas para o Futuro© Assírio & Alvim

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28/09/06

O PRAZER DE LER - 51



[…]
As nossas visitas despediam-se, eu ficava só, evadia-me deste cemitério banal, ia juntar-me à vida, à loucura nos livros. Bastava-me abrir um deles para redescobrir esse pensamento inumano, inquieto, cujas pompas e trevas ultrapassavam o meu entendimento, que saltava de uma ideia a outra tão depressa que eu largava a presa cem vezes por página, deixando-a escapulir, aturdido, perdido. Eu assistia a acontecimentos que meu avô julgaria inverosímeis e que, não obstante, possuíam a deslumbrante verdade das coisas escritas.[…]

Jean-Paul Sartre, in As Palavras

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27/09/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 23


van gogh, rosas bravas

Floriram por engano as rosas bravas
No Inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze – quanta flor! – do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?


Camilo Pessanha

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26/09/06

LER OS CLÁSSICOS - 54



Animula vagula blandula
Hospes comesque corporis
Quae nunc abibis in loca
Pallidula rigida nudula
Nec ut soles, dabis iocos.

Imperador Adriano - s.I-II d.C



Alma minha, brandinha, vagabunda,
do corpo acompanhante e moradora,
a que paragens vais subir agora,
assim lívida, e rígida, e tão nua?
Deixarás de gozar o que hoje gozas.


Trad. de David Mourão-Ferreira
Alminha, vagabunda, blandiciosa,
Do corpo a moradora e companheira,
A que lugares tu te vais agora,
Tão pálida, tão rígida, tão nua?
Nem mais às graças te darás de outrora.


Trad. de Jorge de Sena

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25/09/06

PENSAR - 51



O pequeno Azul

"O pequeno Azul pergunta ao seu velho e sábio avô:
- Como chegar ao amanhã?
E o velho sábio responde:
Primeiro, para chegar ao amanhã, é preciso querer chegar lá ...
Em seguida, devemos escolher as pousadas aonde descansar e reflectir acerca do próximo caminho a percorrer.
Depois, a cada passo do caminho, perguntar o que fazer com as pedras encontradas na estrada, nas margens e no horizonte.
Manter o olhar alternadamente no futuro e a um metro dos pés.
Finalmente e sempre:
- sentir e caminhar, caminhar e sentir, sentir e caminhar...
Como o pequeno Azul, caminhando e, sobretudo, sentindo, chegaremos ao amanhã..."

Autor desconhecido, Como chegar ao amanhã

In http://www.metaforas.com.br/ e http://msprof.blogspot.com

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24/09/06

OMNIA VINCIT AMOR - 58



Ergueu-se já a noite. Mais nada ao nosso lado
senão o fruto, aberto, por onde o sonho sai
até nos envolver; o corpo está cansado.
sob o peso do amor, da fronte que descai...
O brilho que chegava é o anel dos nossos dedos,
o círculo de tudo que as mãos ali sustêm:
as coisas mais distantes, o desejo, os segredos
que passam pelos olhos e as nossas redes prendem.

- Pescadores somos nós, com os pés mergulhados
na ternura, no tempo, e os corpos enlaçados.

Fernando Guimarães

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23/09/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 22



Sabia de uma rosa que me ia pouco a pouco
estirando e afrouxando, corpo a corpo, até à alma.

A beleza não tem limites nem aroma
mas durante longos meses senti sua fragância.

Estivemos os dois a partilhar-nos, vida
que nos fundia e nos distanciava.

Maria Victoria Atencia

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22/09/06

DESASSOSSEGOS - 43



fechou-se o sol,
fechou-se o sentido do sol,
iluminou-se o sentido de fechar .


Alejandra Pizarnik

encontrado em http://www.theresonly1alice.blogspot.com/

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21/09/06

OS MEUS POETAS - 59



Testamento de um homem de bom senso

Quando eu morrer, não faças disparates
Nem fiques a pensar: "Ele era assim..."
Mas senta-te num banco de jardim,
Calmamente comendo chocolates.
Aceita o que te deixo, o quase nada
Destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que vivi
Para ser em lembranças prolongada.
Porém, se, um dia, na tarde em queda,
Surgir uma lembrança desgarrada,
Ave que nasce e em voo se arremeda,
Deixa-a pousar em teu silêncio, leve
Como se apenas fosse imaginada
Como uma luz, mais que distante, breve.

Carlos Pena Filho

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20/09/06

DO FALAR POESIA - 55



Crónica das águas novas

«Os ouriços estão mesmo, mesmo a abrir, amarelinhos e cerdosos como os seus irmãos cacheiros. Até à castanha a chuva ainda veio fazer bem!
Ouço cantar:

No alto daquela serra (oh meu bem!)
Tem meu pai um castanheiro,
Que dá castanhas em Maio (oh meu bem!)
Cravos roxos em Janeiro!

A poesia é isso: fazer com que os castanheiros dêem castanhas agora e cravos mais logo, sem transtorno do Mundo nem míngua do assador. E que chova! Chova do céu a água precisa, entre na terra a que baste, e empoce a restante até à evaporação. Com poças estreladas se fazem nuvens novas. Com nuvens novas se enchem as poças velhas, e assim por diante. Eterno retorno.»
Vitorino Nemésio, Viagens ao pé da porta (1949)

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19/09/06

NOCTURNOS - 14


No templo da montanha

Noite no templo
do alto da montanha.
Posso levantar a mão,
acariciar as estrelas,
mas não ouso falar
em voz alta.
Receio assustar
os habitantes do céu.

Li Bai

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18/09/06

LEITURAS - 22



Fecho os olhos para viver. Para matar também. E nisso sou o mais forte, pois ele só os fecha para dormir, e o pró­prio sono não lhe traz nenhum alívio. As suas trevas são habitadas por mortos, assombradas por crueldades. Eu sei que ele não gosta do repouso, tal como todos os grandes da terra. O repouso deixa-o a sós com a consciência e os remorsos, com o arrependimento de ter agido sempre como um poderoso, ou seja, como um homem aterrorizado pelo seu poder. Uma vez, há cinco anos atrás, encontrei-o no templo, de manhã, ainda mal acordado. Tinha os olhos ver­melhos, inchados de fadiga, e não tinha coragem de os fixar nos nossos, com medo de que pudéssemos decifrar neles o nome ou as feições dos que o tinham atormentado durante a noite. Adoram-no como a um deus, mas ninguém o ama. Porque ele é o autor da Paz, em geral, e criou o maior impé­rio de todos os tempos, mas é também o autor do Medo, em particular, o medo dos outros e o seu próprio medo.[…]

Vintila Horia, Deus nasceu no Exílio

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17/09/06

CAMONIANAS - 21



Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que o amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.


Luís Vaz de Camões - Rimas

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16/09/06

DE AMICITIA - 46



Queria ter o sol só para mim, tê-lo de forma a dele poder de vez em quando ceder parte apenas a um dos meus mais íntimos amigos.


Luís Miguel Nava

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15/09/06

PÉROLAS - 86





Um galo que canta, um cavalo que relincha,
um gato que volteia: a aurora.
Um lírio que se inclina, um limão que cai,
uma árvore que estala: meio dia.
As areias que azulecem, os fumos que sobem,
os amantes que se encontram: a noite.



Autor árabe desconhecido

(da colectânea O Jardim das Carícias - traduzido por Joaquim Pessoa, in Os Herdeiros do Vento - Antologia Apócrifa, Litexa, 1984)

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14/09/06

PENSAR - 50



[…]
A dor é subjectiva. Só podemos sentir a nossa. A dor dos outros é sempre uma interpretação, de acordo com as nossas experiências prévias. Como cada um de nós é único, nos materiais utilizados e nos arranjos, nunca saberemos de facto o que os outros sentem, mesmo aqueles que estão perto de nós, mesmo aqueles que amamos. A nossa capacidade de sofrimento é ilimitada, como prova a dor crónica.A nossa necessidade de consolo também. Como não sabemos o que dói nos outros, e até onde, nunca seremos capazes de consolar ou avaliar o consolo .



Luís Januário in a natureza do mal- http://www.anaturezadomal.blogspot.com/

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13/09/06

LER OS CLÁSSICOS - 53



Meu marido labuta no campo,
eu não paro na lida da casa.
Um casal tem sempre que fazer,
e que ser unido no trabalho.

O casal camponês tem de zelar pelo amor.
O casal da cidade zela pela sua roupa.
Pode trocar-se um fato velho por um novo.
Não se troca o amor de uma vida inteira.

Eu cozo o arroz e preparo o chá.
Tu mondas, semeias, cavas e ceifas.
Quando como um ovo, deixo-te a gema.
Juntos envelheceremos.

Canção Popular chinesa (Século XVIII)
in Claude Roy, A China num Espelho

Tradução de António Ramos Rosa

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12/09/06

DO FALAR POESIA - 54


foto de ana assunção

Poesia-orgasmo

De silabas de letras de fonemas
se faz a escrita. Não se faz um verso.
Tem de correr no corpo dos poemas
o sangue das artérias do universo.

Cada palavra há-de ser um grito.
Um murmúrio um gemido uma erecção
que transporte do humano ao infinito
a dor o fogo a flor a vibração.

A poesia é de mel ou de cicuta?
Quando um poeta se interroga e escuta
ouve ternura luta espanto ou espasmo?

Ouve como quiser seja o que for
fazer poemas é escrever amor
a poesia o que tem de ser é orgasmo.

José Carlos Ary dos Santos

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11/09/06

DESASSOSSEGOS - 42



Canção desesperada

Nem os olhos sabem que dizer
a esta rosa da alegria,
aberta nas minhas mãos
ou nos cabelos do dia.

O que sonhei é só água,
água só, roxa de frio.
Nenhuma rosa cabe nesta mágoa.
Dai-me a sombra de um navio.

Eugénio de Andrade em Até Amanhã - Limiar, Porto, 1956
[Consta também na belíssima e antiga edição da Inova]

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10/09/06

LEITURAS - 21




Chamem-me Ismael. Há alguns anos, quantos ao certo, não importa, com pouco ou nenhum dinheiro na bolsa, e sem nada de especial que me interessasse em terra, veio-me à ideia meter-me num navio e ver a parte aquática do mundo. É uma maneira que eu tenho de afugentar a melancolia e regularizar a circulação. Sempre que na minha boca se desenha um esgar carrancudo; sempre que me vai na alma um Novembro húmido e cinzento, sempre que dou comigo a deter-me involuntariamente em frente das agências funerárias ou a engrossar o séquito de todos os funerais com que me deparo; e, especialmente, sempre que me sinto invadido por um estado de espírito de tal maneira mórbido, que só os sólidos princípios morais me impedem de descer à rua com a ideia deliberada de arrancar metodicamente os chapéus a todos os transeuntes, nessa altura, dou-me conta que está na hora de me fazer ao mar, quanto antes. É o meu estratagema para evitar o suicídio. Catão lança-se sobre a espada com um floreado filosófico; eu, calmamente embarco. Nada há de surpreendente nisto. Embora não se dêem conta, tal como eu, quase todos os homens acalentam, mais tarde ou mais cedo, este desejo de mar.

Herman Melville, Moby Dick
Recolhido em http://puracoincidencia.blogspot.com/

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09/09/06

PÉROLAS - 85


foto de eli

As cousas que não têm cura
Amador, não cures delas,
e as que não têm ventura
não te aventures por elas.


Bernardim Ribeiro

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08/09/06

DE AMICITIA - 45



Um Amigo

Há uma casa no olhar
de um amigo.
Nela entramos sacudindo a chuva.
Deixamos no cabide o casaco
fumegando ainda dos incêndios do dia.
Nas fontes e nos jardins
das palavras que trazemos
o amigo ergue o cálice
e o verão
das sementes.
Então abre as janelas das mãos para que cantem
a claridade, a água
e as pontes da sua voz
onde dançam os mais árduos esplendores.

Um amigo somos nós, atravessando o olhar
e os véus de linho sobre o rosto da vida
nas tardes de relâmpagos e nos exílios,

onde a ira nómada da cidade arde
como um cego em busca de luz.


Eduardo Bettencourt Pinto
Encontrado em modus vivendi - http://amata.anaroque.com/

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07/09/06

ESCREVER -39





Écrire c'est aussi ne pas parler. C'est se taire. C'est hurler sans bruit.


Marguerite Duras in Écrire

[Escrever é também não falar. É calar. É gritar/uivar sem ruído.]

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06/09/06

OMNIA VINCIT AMOR - 57



Olho o céu sem fim
à espera de ver a estrela que tu vês

Vou ao encontro dos viajantes que chegam de todo o lado
à espera que alguém se tenha inebriado com o teu perfume

Enfrento os ventos
à espera que tragam uma mensagem tua

Vagueio sem destino
à espera de ouvir uma canção que fale de ti

Olho as mulheres que encontro sem outra intenção
que descobrir um toque da tua beleza nos seus rostos


Al – Thurthusi, Andaluzia, s.XI d.C

In
O vinho e as rosas
Trad. de Jorge Sousa Braga

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05/09/06

PENSAR - 49



A legião sagrada

Quase todos em trevas;
sobre poucos - estrela -
brilha a imortalidade;
o céu fez o homem livre
para escolher.


Andréas Kálvos (1792-1869),
tradução de José Paulo Paes

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04/09/06

CAMONIANAS - 20



a estrofe 145 do Canto X em várias línguas

145



No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho
destemperada e a voz enrouquecida,
e não do canto, mas de ver que venho
cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
não no dá a pátria, não, que está metida
no gosto da cobiça e na rudeza
dhüa austera, apagada e vil tristeza
.



No más, Musa, no más, que destemplada
la lira está y la voz enronquecida
y no del canto, mas de ser llegada
a cantar a una gente ensordecida!
Que no da aquel favor la patria amada
que alza el ingenio ,porque está metida
en gusto de codicia y en rudeza
de una estraña, amatada y vil tristeza.

Trad de Benito Caldera – s. XVI


Non piú, Musa, non piú! Che già scordata
è la lira, la voce s’è arrochita:
non peri l canto;quella che ha cantata
ègente fatta sorda ed indurita.
Il favore da cui viene esaltata
la mente non può dar la mia avvilita
Patria: la cupidigia ama e l’asprezza
di un’austera, fatale e vil tristezza.

Trad. de Riccardo Averini,ed. Mursia, Milano,1972


No more, Muse, no more, my lyre
is out of tune and my throat hoarse,
not singing but from wasting song
on a deaf and coarsened people.
Those rewards which encourage genius
my country ignores, being given over
to avarice and philistinism,
heartlessness and degrading pessimism.

Trad. de Landeg White,1997



Assez, Muses, assez! Ma lyre est désaccordée, et ma voix enrouée, non du chant, mais de voir que je chante pour dês hommes sourds et endurcis. La faveur qui enflamme le génie, la Patrie la refuse; elle la refuse, car elle est en proie aux convoitises, à la rudesse d’une morne, sombre et vile tristesse.

trad. De Roger Bismut,ed.Centre Culturel Portugais/Fondation Calouste Gulbenkian, Paris, 1992


Non plura, Musa, canam, nam iam lyra
Dissona est pariter et rauca vox;
Nec ipsum propter cantum, sed quod surdae
Indurataeque simul genti canto.
Quo maxime succenditur ingenium,
Favorem Patria non tribuit, turpi,
Magna nempe cupidine, et maestitiae
Rudis vilisque tenebris immersa.
Clemente de Oliveira, O.P. interprete – Olisipone, MCMLXXXIII
[obrigada, Zef]

Esta entrada vai, naturalmente, e em especial, para quem me ofereceu a edição do Poema em castelhano.

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03/09/06

DESASSOSSEGOS - 41


foto de ana assunção

Todo o problema da vida consiste, pois, nisto: como romper a própria solidão,como comunicar com os outros.

Cesare Pavese
[encontrado in http://casoual.wordpress.com/]

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LEITURAS - 20




O dia de cozedura de vavó Luzia calhava sempre à sexta-feira. O chão da cozinha, revestido de tijolos vermelhos e que nos outros dias da semana se podia varrer com a língua, ficava, nesse dia, num verdadeiro esparrame: os molhos de lenha de ramada e de tremoceiros atados com um baraço de tabuga e emedados ao pé do talhão da água, os alguidares de barro da Vila em cima da amassaria com a massa levedando que era um louvar a Deus - ela nunca se esquecia de a benzer e encomendar no fim da amassadura, ao acrescentar-lhe o fermento - e vavó, lenço pela testa e amarrado atrás na nuca, a cova-do-ladrão, numa dobadoira viva, as faces tintas do lume, ora tendendo o pão já lêvedo, ora botando lenha no forno para o esquentar.Todas as manhãs que Nosso Senhor botava ao mundo, no meu caminho para a escola do senhor professor Anacleto, o Caniço, por ser acrescentado em tamanho e escanzelado de carnes, era certo como a Igreja que tinha paragem obrigatória na tenda do meu avô José dos Reis, à ilharga da casa. Pedia-lhe a bênção, vavô subença, Deus te abençoe, meu rico home, e, enquanto o dianho esfregava um olho e coçava o rabo pelado, dava meia volta pelas traseiras e ia ter à cozinha, onde era milagre não se encontrar vavó Luzia na lida das panelas, da lavagem ou do pão.
Cristóvão de Aguiar, A semente e a seiva, (cap. I, abertura), da trilogia Raiz Comovida.

encontrado in http://ruadaspretas.blogspot.com/

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02/09/06

OS MEUS POETAS - 58



Outros virão depois de nós,

Mais pacientes, mais teimosos,
Mais fortes ou mais hábeis.

Hão-de saber extrair à terra
Mais do que nós.

E hão-de ter como suporte
O canto que foi cantado

Quando era a nossa vez


Eugène Guillevic
trad. de David Mourão-Ferreira

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01/09/06

O PRAZER DE LER - 50




Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: «O que é que você leu?» Respondi: «Dostoievski». Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: «Que mais?». E eu: «Dostoievski». Teimou: «Só?». Repeti: «Dostoievski». O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema de não sei quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.
Nelson Rodrigues

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