31/10/06

DESASSOSSEGOS - 45


foto de Oleg Titov



De repente estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatória mal acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem sombras que me cercam - só sombras, filhas dos móveis hirtos e da luz que me acompanha. Elas me rondam aqui ao sol, mas são gente.

Bernardo Soares-Fernando Pessoa - Livro do Desassossego

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30/10/06

Manifesto Europeu




Em defesa da instrução e da cultura, recusando a via utilitarista da famigerada "deliberação de Lisboa". Pode assinar-se em francês, inglês, espanhol... Em portugês não consta, mas há campo para a identificação do nosso país.

É uma iniciativa de professores europeus do ensino básico e secundário, a que se agregaram outros professores e não professores.

Pode ler-se e assinar-se aqui:

http://www.sauv.net/meuro.php

[enviado pela Soledade]

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PÉROLAS - 90


na foto:Jade

à luz dos olhos do seu gato

Banville afirma que quando
a vela de Camões se apagava
o poeta continuava a escrever o poema
à luz dos olhos do seu gato.


Gaston Bachelard, epígrafe em Assinar a Pele, Antologia de Poesia Contemporânea sobre Gatos, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001

Encontrado in http://arcadajade.blogs.sapo.pt/

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29/10/06

LER OS CLÁSSICOS - 57



OS PEQUENOS SÃO O PÃO QUOTIDIANO DOS GRANDES
[….]

Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões. Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.[…] Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens.
Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias
se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.[...]

E para que vejais como estes comidos na terra são os pequenos, e pelos mesmos modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste pecado: Nonne cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut cibum panis? «Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam e paguem o seu merecido aqueles que cometem a maldade?» E que maldade é esta, à qual Deus singularmente chama maldade, como se não houvera outra no Mundo? E quem são aqueles que a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os maiores, que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Nestas palavras, pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos. E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem? Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Parece-vos bem isto, peixes? Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens. [...]
Padre António Vieira, s.XVII - Sermão de Santo António aos Peixes
Obs.: pode ler na íntegra o sermão- e até fazer download - em http://pwp.netcabo.pt/0511134301/sermao.htm

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28/10/06

POETAS AMIGOS - 41



meu coração

meu coração fugiu das coisas vãs
venceu as pedras o ar o espaço
para poder cantar disse manhã
criança
de
água,

ave branca.


maria azenha
[A Maria publica também em arde o azul -http://ardeoazul3.blogspot.com/;tem vários livros publicados]

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27/10/06

NOCTURNOS - 17



Magnificat

Quando é que passará esta noite interna, o universo,

E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia!



Álvaro de Campos.Fernando Pessoa

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26/10/06

ESCREVER - 41




Para um escritor, uma das obras mais importante – talvez mesmo a mais importante de todas – é a imagem que de si deixa na memória dos homens - para lá das páginas que escreveu.

Jorge Luís Borges, Curso de Literatura Inglesa

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25/10/06

LER OS CLÁSSICOS - 56


lalique

Afinidades electivas

Todos os dias deveríamos ler
um bom poema, ouvir uma linda canção,
contemplar um belo quadro
e dizer algumas bonitas palavras.

Pensar é mais interessante que saber,
mas é menos interessante que olhar.

Johann W. von Goethe

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24/10/06

LEITURAS - 25






A abrir:

Eu abandono Roma
Os camponeses abandonam a terra
As andorinhas abandonam a minha aldeia
Os fiéis abandonam as igrejas
Os moleiros abandonam os moinhos
Os montanheses abandonam os montes
A graça de deus abandona os homens
Alguém abandona tudo.





Dedicatória

Dedico todas estas histórias aos camponeses
Que não abandonaram a terra
Para encher os nossos olhos de flores na primavera




Uma das histórias:

As velas inclinadas

Com violetas na boca e falando de andorinhas que fazem o ninho nos currais para comerem os mosquitos que voam em torno das vacas, chegámos a uma igrejinha guardada por dois irmãos e uma irmã.
Abriram-nos a porta e vimos que o pavimento estava coberto de velas, pequenas e grandes, pegadas ao chão com gotas de cera. As velas estavam todas com as pontas apagadas viradas para o altar, em devoção, porque lá em cima há um quadro redondo com dois vidros tendo à mostra um fio de palha.
Conta-se que um soldado cristão, há mil anos, tornando a casa após a guerra para libertar Jerusalém, roubara um punhado de palha do estábulo onde nasceu o Menino Jesus. Depois vendeu-a pela Itália fora juntamente com um tipo que tinha o osso de um santo e o fazia tocar às mulheres que queriam ficar grávidas.
Os três irmãos acendem as velas todas uma vez por semana com uma cana comprida que tem uma mecha na ponta. Olham um pouco aquele fio de palha, fazem o sinal da cruz, e depois sopram ao mesmo tempo para apagar tudo. Dentro da igreja fica por dois ou três dias a névoa do fumo.

Tonino Guerra -O Livro das Igrejas Abandonadas, Assírio & Alvim, 1997
tradução: José Colaço Barreiros


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23/10/06

CAMONIANAS - 22



Depois de ter provado, com a narração do seu canto, o seu valor,Camões dirige-se ao Rei (como o fizera,antes, na Dedicatória -nessa altura identificando-se apenas como «um novo exemplo/de amor dos pátrios feitos valerosos» que iria divulgar «em versos numerosos» que convida a ouvir):

154

Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado.
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.

155
Pera servir-vos, braço às armas feito;
Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
[...]


Lus,X, 154-155

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22/10/06

ESCREVER - 40


foto de ângela nunes

Escrever




Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio. Que é que eu posso escrever. Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma idéia. Cada palavra materializa o espirito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento. Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas.

Todas as palavras que digo - é por esconderem outras palavras. Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exactamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade.

Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida.

As palavras é que me impedem de dizer a verdade. Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo.

Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também.

Sim, mas é a sorte às vezes. Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranquilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras.

Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial.

Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora. Simplesmente as palavras do homem.
Clarice Lispector

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21/10/06

OS MEUS POETAS - 61



um som profundo do Outono

Como a floresta, faz de mim a tua lira
importa que também as minhas folhas caiam
o tumulto das tuas poderosas harmonias
virá arrancar-nos

um som profundo do Outono suave,

apesar da sua tristeza



Percy Bysshe Shelley (1792-1822)

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20/10/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 25




"A rosa é sem porquê. Floresce por florescer.
Não dá atenção a si mesma, nem pergunta se a vêem."


Angelus Silesius, 1624/1677, místico alemão

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19/10/06

PENSAR - 54




Sonhos sem Ilusões

Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos. Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os sentimentos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstractas, e as abstractas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde.

Bernardo Soares.Fernando Pessoa
in 'O Livro do Desassossego'

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18/10/06

OMNIA VINCIT AMOR - 59


imagem:frida khalo

Do amor XXXV

Soergo meu passado e meu futuro
E digo à boca do Tempo que os devore.
E degustando o êxito do Agora
A cada instante me vejo renascendo

E no teu rosto. Túlio, faz-se um Tempo

Imperecível, justo
Igual à hora primeira, nova, hora-menina
Quando se morde o fruto. Faz-se o Presente.
Translúcida me vejo na tua vida
Sem olhar para trás nem para frente:
Indescritível, recortada, fixa.

Hilda Hilst

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17/10/06

EDUCAÇÃO - 18




"Numa perspectiva realmente progressista, democrática e não-autoritária, não se muda a "cara" da escola por portaria. Não se decreta que, de hoje em diante, a escola será competente, séria e alegre. Não se democratiza a escola autoritariamente. A Administração precisa testemunhar ao corpo docente que o respeita, que não teme revelar os seus limites a ele, corpo docente. A Administração precisa deixar claro que pode errar. Só não pode é mentir."

Estas palavras foram escritas por Paulo Freire a respeito do período em que dirigiu a Secretaria de Estado da Educação da Prefeitura de S. Paulo, Brasil.
Como é diferente a Ética de um Educador em relação aos costumes de certos políticos.

Henrique Santos in http://edutica.blogspot.com/

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O PRAZER DE LER - 53



Conhecimento Maduro


Passa-se com os livros uma coisa semelhante ao que sucede com um novo conhecimento que travamos com alguém. Num primeiro momento experimentamos um profundo prazer em encontrar coincidências gerais de opinião ou ao sentirmo-nos tocados num aspecto importante da nossa existência. Só depois, quando o conhecimento se aprofunda, começam a surgir as diferenças. Nessa altura, o comportamento inteligente caracteriza-se pela capacidade de não retroceder imediatamente, como muitas vezes acontece na juventude, e de pelo contrário reter o que há de coincidente enquanto se vão esclarecendo mutuamente todas as diferenças, sem se pretender chegar a acordo absoluto.

Goethe, in 'Máximas e Reflexões'

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16/10/06

PÉROLAS - 90 A




Esta Primavera na minha cabana
Absolutamente nada,
Absolutamente tudo.

Kobayashi Issa

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15/10/06

LEITURAS - 24




Cabeça de boga

No exame do segundo grau fiquei distinto; o Abílio ficou suficiente. Uma tristeza! Compareceu de calça comprida, colete branco, a "châtelaine" de D.Claudina fazendo de corrente de relógio. Como roía nas unhas, o relógio era um descanso para encher o minuto de ignorância, atrapalhado com aquilo de "Qual foi o rei que mandou plantar o pinhal de Leiria?".
O Sr. Fontes, o professor das Cinco, que era membro do júri, bem cochichava de lá: "D.Dinis... D.Dinis!..." O Abílio, porém, doido por toiros, saíra-se com "D.Afonso Quarto, o Bravo" - e teve a raposa por um triz.
Cá fora, esperavam-nos meu pai e o dele ao lado do Sr. Professor. O mestre não me disse palavra; mas a ele não o largou:
- Este cabeça de boga que me vai estragar os resultados!
O pai do Abílio estava com vergonha do filho, com raiva ao filho, com raiva ao Sr. Professor, com pena de si, do Sr. Professor e do filho:
- Pedaço de mariola! (Olha como tens esse colarinho!) E fazer-me gastar um dinheirão para ver isto!
- Este cabeça de boga, pôr-me uma nódoa na pauta! - teimava o Sr. Professor.
O pai do Abílio agachara-se um pouco para lhe limpar as lágrimas, mas carregava no lenço e obrigava-o a assoar-se sem precisão nenhuma:
- Força!... O toleirão, que era o primeiro em decimais! (Ó pequeno, não chores, que o Sr. Professor manda na Escola, e em ti quem manda sou eu!)
Mas o Abílio chorava mordido e com os olhos raiados de sangue. Quando proclamaram os resultados, O Sr. Professor abrandou.
- "Abílio Cardoso de Aguiar, suficiente. Mateus Queimado Gomes de Meneses, óptimo".
Meu Pai deu um beijo no Abílio antes de me beijar a mim. O pai do Abílio apertou solenemente a mão de meu Pai:
- Ah!, Senhor Meneses! Que consolação, um filho assim!

Estávamos todos mais ou menos vexados; só o Abílio deixou de chorar. Não se sabia bem se por escapar à raposa, se por qualquer outra coisa. Num ímpeto de todo o seu ser atirou-me os braços e disse-me:
- Ó Mateus, ainda bem!
E foi nos olhos dele que eu me senti distinto.

Vitorino Nemésio, in O Mistério do Paço do Milhafre (contos)

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14/10/06

POETAS AMIGOS - 40



a quieta água

cada rosa traz em si todas as rosas, sendo, porém, única
como um cristal que no ventre da terra aguarda a prometida luz.
no peito de cada um há uma fonte cuja água aflui a um mesmo mar,
e cada fonte difere por uma coisa que no cristal é uma luz guardada,
na nuvem uma forma, no animal um anseio, na flor um cativo movimento
e, em ti, talvez o olhar reflectido no tanque de pedra da tua água interior.
só pela poesia distingo o rosto de cada coisa, o seu secreto coração
pudicamente guardado no fundo da cisterna, onde o vento não inquiete
o gesto cristalizado na memória, a idealização do nome, tão além
da simplicidade das quietas maçãs ou da erva do caminho, entre pedras.
em cada tanque interior a água reflecte o mesmo céu, a mesma lua
se dá toda a cada olhar. o céu põe o seu diadema de estrelas e eu sigo
levando na mão uma rosa que traz em si o eco de todas as cisternas.

gonçalo bruno de sousa

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13/10/06

LER OS CLÁSSICOS - 55




Não aspires, minh’ alma à vida eterna:
Mas vai esgotando o tempo do possível.

Píndaro

Trad. de David Mourão-Ferreira

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12/10/06

PÉROLAS - 89


almada negreiros


mãe, eu sei que ainda guardas mil estrelas no colo.
eu, tantas vezes, ainda acredito que mil estrelas são
todas as estrelas que existem.


José Luís Peixoto - A criança em ruínas

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11/10/06

A nossa amiga Sílvia Chueire estará no Porto



Leitura de poemas da "nossa" amiga brasileira Sílvia Chueire, com a presença e participação da própria, na próxima 6ª feira, dia 13, às 21h30, na Capela de Fradelos, Porto.
Quem puder e estiver por perto...pode ter o prazer de a conhecer e de a ouvir ler Por favor um blues (ed.Cosmorama, Porto)...

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NOCTURNOS - 16




Pernoitas em mim
e se por acaso te toco a memória... amas
ou finges morrer

pressinto o aroma luminoso dos fogos
escuto o rumor da terra molhada
a fala queimada queimada das estrelas

é noite ainda
o corpo ausente instala-se vagarosamente
envelheço com a nómada solidão das aves

já não possuo a brancura oculta das palavras
e nenhum lume irrompe para beberes

Al Berto. Vigílias

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10/10/06

O PRAZER DE LER - 52




A Verdadeira Leitura


As obras dos grandes poetas até hoje não foram lidas pela humanidade, porque só grandes poetas podem lê-las. Só foram lidas como a multidão lê as estrelas, quando muito astrologicamente, e não astronomicamente. A maioria dos homens aprendeu a ler tendo em vista a utilidade mesquinha, do mesmo modo que aprendeu a calcular para tomar nota das receitas e despesas e não ser trapaceado nos negócios; mas da leitura como exercício intelectual nobre, pouco ou nada sabe; contudo isso é que é leitura em acepção elevada, não aquela que nos embala como um luxo e adormenta as nossas mais nobres faculdades, e sim a que nos mantém expectantes e à qual devotamos as nossas horas mais alertas e despertas.

Henry David Thoreau, in 'Walden'

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09/10/06

DE AMICITIA - 48



[…]
O meu país são todos os amigos
que conquisto e que perco a cada instante
Os meus amigos são os mais recentes
os dos demais países os que mal conheço e
tenho de abandonar porque me vou embora
pois eu nunca estou bem aonde estou
nem mesmo estou sequer aonde estou
[…]

Ruy Belo fragmento de Peregrino e hóspede sobre a terra- in Todos os Poemas II.

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08/10/06

PENSAR - 53



A Solidão em Perspectiva

É exactamente porque não há solidão que dizes que há solidão. Imagina que eras o único homem no universo. Imagina que nascias de uma árvore, ou antes, porque eu quero pôr a hipótese de que não há árvores, nem astros, nem nada com que te confrontes: supõe que o universo é só o vazio e que tu nascias no meio desse vazio, sem nada para te confrontares. Como dizeres «eu estou sozinho»? Para pensares em «eu» e em «sozinho» tinhas de pensar em «tu» e em «companhia». Só há solidão «porque» vivemos com os outros...

Vergílio Ferreira, in 'Estrela Polar'

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07/10/06

PÉROLAS -88



Embora tenha o sol para me alumiar
e a lua e as estrelas depois do sol se pôr
sem a luz dos teus olhos negros
é sempre negra a noite em meu redor




Bhartrhari(Índia,s.V d.C.)

In «O vinho e as rosas» - Trad. de Jorge Sousa Braga

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06/10/06

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 24



Rosas e Cantigas

Eu hei-de despedir-me desta lida,
Rosas? - Árvores! hei-de abrir-vos covas
E deixar-vos ainda quando novas?
Eu posso lá morrer, terra florida!

A palavra de adeus é a mais sentida
Deste meu coração cheio de trovas...
Só bens me dê o céu! eu tenho provas
Que não há bem que pague o desta vida.

E os cravos, manjerico, e limonete,
Oh! que perfume dão às raparigas!
Que lindos são nos seios do corpete!

Como és, nuvem dos céus, água do mar,
Flores que eu trato, rosas e cantigas,
Cá, do outro mundo, me fareis voltar.

Afonso Duarte

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05/10/06

NO DIA INTERNACIONAL DO PROFESSOR E COM RISCO DE ME REPETIR



De um testemunho já antigo e que mantenho, apesar de tudo o que nos vão fazendo:


«[...] Assim me fiz, oficial do mesmo ofício[...] .Não lamento a escolha feita - é ofício que exige muito amor, muita abertura ao outro, muita vontade de partilhar, muito entusiasmo (à letra «deus em nós»). Mas que ofício melhor para crescermos e nos enriquecermos durante uma vida inteira?
[…]
E afinal:- que melhor do que ver brilhar os olhos de um aluno quando, connosco, descobre um universo novo? Ou antigos alunos que nos associam à descoberta da beleza de um ou mais versos d'Os Lusíadas ou da «Tabacaria» de Álvaro de Campos? Que satisfação maior do que esta de ver-se reconhecido e de nos sentirmos assim ligados à descoberta da beleza e da vida?


E depois é bem verdade que bom professor não envelhece nunca...e não morre - porque fica a sua imagem bem viva na memória e no coração daqueles com quem e para quem viveu...»

Amélia Pais, professora

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04/10/06

OS MEUS POETAS - 60



Uma pequenina luz

Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una picolla... em todas as línguas do mundo

uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a adivinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme que não ilumina apenas brilha.

Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Brilhando indeflectível.
Silenciosa não crepita não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.

Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância.
Aqui no meio de nós.
Brilha .

Jorge de Sena

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03/10/06

LEITURAS -23

[o sabor da madalena]

Mas no preciso instante em que o gole com migalhas de bolo misturadas me tocou o céu da boca, estremeci, atento ao que de extraordinário estava a passar-se em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, um prazer isolado, sem a noção da sua causa. Tornara-me imediatamente indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa: ou, antes, tal essência não estava em mim, era eu mesmo. Deixara de me sentir medíocre, contingente, mortal. Donde poderia ter vindo aquela poderosa alegria? Sentia-a ligada ao gosto do chá e do bolo, mas ultrapassava-o infinitamente, não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde agarrá-la? Bebo um segundo gole, no qual nada encontro a mais que no primeiro, e um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, a virtude da bebida parece estar a diminuir. É verdade que a verdade que procuro não está nela mas em mim.(...) Poiso a xícara e volto-me para o meu espírito. A ele cabe encontrar a verdade. Mas como? Grave incerteza, sempre que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o explorador, é todo ele o país escuro que tem a explorar e onde lhe não servirá de nada toda a sua bagagem. Explorar? Não só: criar. Está diante de algo que não é ainda e que só ele pode tornar real e depois fazer entrar na sua luz.

Marcel Proust - Em busca do tempo perdido - Do lado de Swann

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02/10/06

DESASSOSSEGOS - 44



Regressámos ao anonimato
mais leves.
Mas é minha a muda inquietação
esse temor
da armadilha do cinismo.

A noite contempla-nos
despojados de sonhos
e, tu disseste
- tão próximas as estrelas –
tão longo o caminho para chegar a elas.

Maria Alexandra Dáskalos, Do Tempo Suspenso

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01/10/06

DE AMICITIA - 47

...e somos escolhidos por eles

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NOCTURNOS - 15



De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos

e canta
o êxtase do dia.

Eugénio de Andrade

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