17/07/07

LEITURAS - 46


Todo o mundo (Everyman)
excertos
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A religião era uma mentira que tinha reconhecido cedo na vida, e achava ofensivas todas as religiões, considerava sem sentido e pueris as suas patetices supersticiosas, não suportava a sua completa imaturidade - a conversa infantil e a virtude e o rebanho, a avidez dos crentes. Não embarcava em balelas sobre a morte e sobre Deus nem em obsoletos céus de fantasia. Só havia os nossos corpos, nascidos para viver e morrer nos termos decididos pelos corpos que tinham nascido e morrido antes de nós. Se dele se pudesse dizer que tinha escolhido um nicho filosófico, era esse - tinha-o descoberto cedo e por intuição, e talvez fosse uma visão elementar mas nem por isso deixava de ser completa.

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Ao tomar consciência de tudo o que tinha desperdiçado, por si só e sem qualquer boa razão aparente e, o que ainda é pior, inteiramente contra a sua intenção, contra a sua vontade – da sua brusquidão para com um irmão que nem uma vez na vida tinha sido brusco para com ele, que nunca tinha deixado de o acalmar e de vir sem eu socorro, do efeito que tinha tido sobre os filhos abandonando os seus lares – ao chegar à humilhante conclusão de que estava agora reduzido, e não só fisicamente, a alguém que não queria ser, desatou a dar murros no peito, a bater ao ritmo da sua auto - recriminação, por poucos centímetros não acertando no desfibrilador. Naquele momento ficou a saber muito melhor do que Randy ou Lonny alguma vez saberiam, onde residia a sua insuficiência. Este homem normalmente calmo batia furiosamente no coração como um fanático em oração e, assaltado pelo remorso não só deste erro mas de todos os seus erros, de todos os erros indeléveis, estúpidos, inelutáveis - arrasado pelo desgosto das suas limitações mas agindo como se todas as contingências incompreensíveis da vida fossem obra sua - disse alto: «nem sequer o Howie! Acabar desta maneira e nem sequer com ele ao pé!»

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Desfaleceu com a sensação de tudo menos de derrotado, de tudo menos de condenado, desejoso de mais uma vez se realizar plenamente, mas não acordou mais. Paragem cardíaca. Deixou de existir, liberto do ser, entrando no nada sem sequer saber. Como desde sempre tinha receado.

Philip Roth-Todo o Mundo-ed.D.Quixote,2007

Lê-se na contracapa do livro: «Uma história iniludivelmente íntima, embora universal, de perda, arrependimento e estoicismo – o combate de um homem contra a mortalidade.»

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