29/02/08

LER OS CLÁSSICOS - 90



Exílios

[...] A tua imagem está gravada no meu coração e é no meu coração que está também traçado o teu afastamento. E mais do que ela me reanima, a tua imagem ausente aflige-me.A tua separação confunde os meus projectos; o teu exílio impede e torna tortuosos os meus caminhos. É por tua causa que a minha alma foi abatida e o meu orgulho foi humilhado. A ponto que os sicômoros se levantam acima do meu cipreste e que o arbusto do hissope pareça mais alto que os meus cedros. Que o morcego ultrapasse o meu abutre e que a mosca voe por cima das asas da minha águia;[...]

Leão Hebreu /Judá Abravanel (1465-1535), médico, filósofo e poeta, judeu português nascido em Lisboa, filho de D. Isaac Abravanel.
[fragmento de um poema escrito em Itália, em 1503, dedicado ao filho do autor, Isaac, de 12 anos, que ficara em Lisboa e fora convertido à força ao catolicismo. Escrito originalmente em hebraico, a tradução para o português é citada por Fiama Hasse Pais Brandão num artigo do Jornal de Letras de 26 de Maio de 1981.]

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28/02/08

OMNIA VINCIT AMOR - 95



... Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece

nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
por vê-los nus e suados.

Eugénio de Andrade

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27/02/08

O PRAZER DE LER - 76





Não Há Verdadeiro Sentido de um Texto

Não há verdadeiro sentido de um texto. Não há autoridade do autor. Quisesse dizer o que quisesse, escreveu o que escreveu. Uma vez publicado, um texto é como um aparelho de que cada um se pode servir à sua maneira e segundo os seus meios: não é certo que o construtor o use melhor do que outro qualquer.


Paul Valéry, in 'A Propósito do Cemitério Marinho'
In http://www.citador.pt

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26/02/08

POETAS MEUS AMIGOS - 74


foto de maria costa

desmesura

em uma lua anterior ao mundo
ocultavam-se as angústias

na imperfeição do tempo
luamo-nos - semicírculos infinitos -
na partitura das paixões

ora finda-se o sol transfigurado
e morrem pedras ao nosso silêncio

por que senso de dor cala-se o instante
desmesurado em futuro ?


Lília Silvestre Chaves

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25/02/08

DA EDUCAÇÃO -36

Porquê tanto ódio, tanto desprezo, tanto ressentimento contra a figura do professor?!...»

«Um sector gritante de extracção de mais valias de biopoder é o da Educação. Pela natureza do trabalho do professor (material e imaterial), é sempre possível fazer crer em que «modernizar» é igual a «gerir bem» igual a «ensinar bem». O que permite retirar o máximo da «modernização em mais valias materiais e imateriais.
Por exemplo, a avaliação dos professores deve ser feita, mas os parâmetros impossíveis impostos pelo ministério, as aberrações nas exigências da assiduidade dos docentes, a quase impossibilidade de obter a nota máxima, as dificuldades extremas em subir na carreira, os estatuto dos avaliadores incompetentes na matéria avaliada, etc. - estão a empurrar os professores para o abandono da profissão e para a reforma antecipada. A Educação sofre um massacre que provoca a fuga dos professores: não é isto um dos objectivos da «contenção», a redução do número dos docentes e dos custos da educação? A racionalidade necessária da avaliação esconde a outra racionalidade imposta pelo défice.
Nisto tudo, uma questão me intriga: porquê tanto ódio, tanto desprezo, tanto ressentimento contra a figura do professor?»


José Gil, Visão, 21 de Fevereiro de 2008

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UMA ATITUDE SE IMPÕE - AFRONTAMENTO -9

Os que lutam

"Há aqueles que lutam um dia; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;
Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis."

Bertold Brecht

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24/02/08

REVIVALISMOS - 17



His master's voice
De quantos se poderia dizer que o são?

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NOCTURNOS - 49



O SENTIMENTO DE UM OCIDENTAL

III –ao gás



E saio. A noite pesa, esmaga.Nos
Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras
Um sopro que arripia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do catolicismo
Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho, rubramente;
E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.

E eu, que medito um livro que exacerbe,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confecções e modas resplandecem;
Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar
Com versos magistrais, salubres e sinceros,
A esguia difusão dos vossos reverberos,
E a vossa palidez romântica e lunar!

Que grande cobra, a lúbrica pessoa
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo!
Sua excelência atrai, magnética, entre o luxo
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

E aquela velha, de bandós! Por vezes,
A sua traîne imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas.
Perto,Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
Flocos de pós de arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se, nas frentes,
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga um cauteleiro rouco;
Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.

"Dó da miséria!... Compaixão de mim!..."
E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-nos sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de latim!

Cesário Verde - O Sentimento de um Ocidental - parte III

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23/02/08

ANO VIEIRINO - 4



Não são só ladrões - diz o Santo - os que cortam bolsas ou espreitam os que se vão banhar, para lhe colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os pobres. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo de seu risco, estes sem temor, nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes que tudo via com mais aguda vista que os outros homens, viu que uma grande tropa de varas (juízes) e ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões e começou a bradar: "Lá vão os ladrões grandes enforcar os pequenos." Ditosa Grécia que tinha tal pregador! Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um cônsul ou ditador por ter roubado uma província.
( ………… )
Os senhores poucos, os escravos muitos; os senhores rompendo galas, os escravos despidos e nus; os senhores banqueteando, os escravos perecendo à fome; os senhores nadando em ouro e prata, os escravos carregados de ferros; os senhores tratando-os como brutos, os escravos adorando-os e temendo-os como deuses; os senhores em pé apontando para o açoite, como estátuas da soberba e da tirania, os escravos prostrados com as mãos atadas atrás, como imagens valíssimas da servidão e espectáculos de extrema miséria. Oh Deus! Quantas graças devemos à Fé que nos destes, porque só ela cativa o entendimento para que, à vista destas desigualdades, reconheçamos contudo vossa justiça e providência! Estes homens não são filhos do mesmo Adão e da mesma Eva? Estas almas não foram resgatadas com o sangue do mesmo Cristo? Estes corpos não nascem e morrem com os nossos? Não respiram o mesmo ar? Não os aquenta o mesmo sol? Que estrela é logo aquela que os domina tão triste, tão inimiga, tão cruel?

P.e ANTÓNIO VIEIRA - Sermão do Bom Ladrão

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22/02/08

OS MEUS POETAS- 83



Ambiente da casa, dos cafés, do bairro
que vejo e percorro: ano após ano.

Criei-te de alegrias e tristezas:
de tantas circunstâncias, tantas coisas.

E já não és senão como te sinto.

constantino cavafy

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21/02/08

DA EDUCAÇÃO - 35

Em defesa da escola pública




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CAMONIANAS- 41



Homenagem a Camões

Através do imitado sentimento,
Ao ler-te, quanta vez tenho sentido
Como é muito maior o amor vivido
Em ato não, mas só em pensamento.
Então invento o que amo e amo o que invento,
Em coisas sem razão tão comovido
Que o ar me falta e o respiro comprimido
Não sei se dá, não sei se tira o alento.
Sabor de amor é esse alto respirar,
Essa angústia em suspiros mal dispersos,
Em amor, que importância tem o ar,
O ar, cheio de fantásticas ações!
Assim, aquele que imitar teus versos,
Primeiro imite o teu amor, Camões.

Dante Milano

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20/02/08

OMNIA VINCIT AMOR - 94



Junta os Dons do Espírito às Vantagens do Corpo

Para ser amado, sê amável, para o que não bastará a beleza do rosto ou do corpo. Se pretendes conservar a tua amiga e não teres nunca a surpresa de ser abandonado, mesmo que sejas Nireu, amado pelo velho Homero, ou o Hilas de delicada beleza que as Náiades raptaram por meio de um crime, junta os dons do espírito às vantagens do corpo. A beleza é um bem muito frágil, tudo o que se acrescenta aos anos a diminui, murcha com a própria duração. As violetas e os lírios com as suas corolas abertas não florescem sempre; e na rosa, depois de caída, só o espinho permanece. Também tu, belo adolescente, cedo conhecerás cabelos brancos, cedo conhecerás as rugas que sulcam o teu corpo. Forma desde já um espírito que dure e fortalece a beleza; só ele subsiste até à fogueira fúnebre.

Ovídio, in 'A Arte de Amar'

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19/02/08

LEITURAS- 67




Constantino guardador de vacas e de sonhos


Pequeno labirinto de nomes e alcunhas


Tem doze anos, mas não deitou muito corpo para a idade. Ainda está a tempo. Um homem cresce até ao fim da vida, se não em altura, pelo menos em obras e ambições. E nisso promete.
Por voto do padrinho e assentimento dos pais, recebeu no registo o nome de Constantino. É um nome bonito, sim senhor. Na aldeia não há outro igual, e isso é bom, pensou a mãe; escusa uma pessoa de matar a cabeça como em certas casas em que os homens usam o mesmo nome e ninguém se entende. Na Chamboeira conheceu ela uma mulher, a Ti Pirralha, metida num inferno de portas adentro por causa de o marido, o filho e o neto se chamarem António.
Enquanto o rapaz foi pitorro, tudo correu bem. Um era o António Grande, o outro só António e o mais novo o António Pequeno, O rapaz porém, deitou muito corpo, e depressa, enquanto o avô continuou cartaxinho, cartaxinho e melindroso, pois começou a pôr-se de vidro fino quando a mulher lhe chamava Grande, vendo nisso uma artimanha dela para se vingar de certas desfeitas que lhe fazia quando bebia um copo a mais.
«Grandes são os burros», refilava então o velho, muito rezingão, com reumático nas cruzes, umas dores parvas como dentadas de lobo. Mas andou tudo raso naquele casal quando a Ti Pirralha o tratou por António Velho para chamar Novo ao neto, o que incendiou o marido, e de tal jeito que a mulher teve de se esconder três dias em casa duma vizinha.
«Velhos são os trapos!», gritava o António Pirralha chamando corja ao povo inteiro da sua aldeia – que não gostava muito dele, valha a verdade.
Foi isto mais ou menos o que a mãe do Constantino lembrou ao marido para defender o nome escolhido pelo compadre. Constantino era um nome bonito para rapaz.


Alves Redol, Constantino Guardador de Vacas e de Sonhos, Editorial Caminho, Lisboa, 20ª ed, 1990

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18/02/08

NOCTURNOS - 48



II – noite fechada

Toca-se as grades, nas cadeias. Som
Que mortifica e deixa umas loucuras mansas!
O aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças,
Bem raramente encerra uma mulher de "dom"!

E eu desconfio, até de um aneurisma
Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;
À vista das prisões, da velha sé, das cruzes,
Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares,
E as tascas, os cafés, as tendas, os estancos
Alastram em lençol os seus reflexos brancos;
E a lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo,
Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:
Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,
Assim que pela história eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto,
Muram-se as construções rectas, iguais, crescidas;
Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,
E os sinos dum tanger monástico e devoto.

Mas num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico d’outrora ascende, num pilar!

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,
Nesta acumulação de corpos enfezados;
Sombrios e espectrais recolhem os soldados,
Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria
Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;
Idade Média! A pé, outras, a passos lentos,
Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives
Uma paixão defunta! Aos lampiões distantes,
Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes
Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas
Descem dos magasins, causam-me sobressaltos;
Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos
E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só,
Eu acho sempre assunto a quadros revoltados:
Entro na brasserie; às mesas de emigrados
Joga-se, alegremente, e ao gás, o dominó!

Cesário Verde-O Sentimento de um Ocidental-2ªparte

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17/02/08

POETAS MEUS AMIGOS - 73




«Je suis de mon enfance comme on est d’un pays»*
Saint-Exupéry



Trazes-me os indícios de uma infância feliz. Num dia quente como o de hoje, quando lá fora é impiedoso o vazio que toma conta das ruas, alumia-se a mesa com o sorriso das histórias que contas. Como é que consegues carregar, intacta, a cintilação desses dias? Nas histórias que contas, nessas lembranças que desfias de um país que é só teu, vou-te conhecendo criança. Outra pessoa, que eu nunca me esqueço de amar na que conheço desde sempre. Aprendo que só morremos quando os outros nos esquecem, e que os meus avós e os teus avós permanecem, sorrindo, apoiados na grade de um varandim, a verem-te a brincar. Aprendo ainda que o que trazemos ao rosto é sempre o resultado desses sorrisos que fomos guardando, dos mais antigos aos mais insignificantes. Felizes, por um momento, na sombra que nos resguarda do vazio lá de fora, eu e tu. Quero também guardar este sorriso. Porque um dia, quando estiver frio, vou precisar dele para me aconchegar.

Miguel b.Innersmile

– in um voo cego a nada -http://innersmile.livejournal.com/
*Epígrafe colocada por Amélia Pais

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16/02/08

PÉROLAS -127

foto minha - azenhas do mar, 2007

[Para a Ana A.]

Gosto do mar desesperado
A bramir e a lutar
E gosto de um barco ainda mais ousado
Sobre esta rebeldia a navegar

Miguel Torga, in Diário

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15/02/08

DESASSOSSEGOS - 68




«Sim, estamos sós, profundamente sós e haverá sempre, à nossa espera, uma camada de solidão, ainda mais profunda. Não há nada que possamos fazer para contrariar isso. Não, por mais espantoso que isso nos pareça, a solidão não nos deveria surpreender. Podemos virar-nos todos cá para fora, mas a única coisa que acontece nessa altura é ficarmos virados para fora e sozinhos em vez de ficarmos virados para dentro, sozinhos. Minha Merry estúpida, minha querida estúpida Merry, ainda mais estúpida do que o teu pai, nem sequer ajuda mandar um edifício pelos ares.»
Philip Roth in ‘Pastoral Americana’

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14/02/08

NOCTURNOS - 47



I – ave-maria

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-nos, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba,
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas,
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas,
Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

Cesário Verde,O Sentimento de um Ocidental -1ºparte

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13/02/08

DE AMICITIA - 69

A Adulação na Amizade

Pois que é próprio da verdadeira amizade dar e receber conselhos, dá-los com franqueza e sem azedume, recebamo-los com paciência e sem repugnância, persuadamo-nos bem de que não há defeito maior na amizade que a lisonja, a adulação, as baixas complacências. Com efeito, não se poderia dar bastantes nomes ao vício desses homens frívolos e enganadores, que falam sempre para agradar, e jamais para dizer a verdade. A dissimulação é funesta em todas as coisas (pois corrompe e altera em nós o sentimento da verdade) mas é, sobretudo, contrária à amizade. Destrói a sinceridade, sem a qual não subsiste mesmo o próprio nome da amizade.[…]

Cícero, 'Diálogo sobre a Amizade'

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12/02/08

NOCTURNOS - 46




À Noite

A música no jardim
tinha dor inexplicável.
Um cheiro de maresia
vinha das ostras no gelo.

Ele disse: "Sou fiel!"
e tocou-me no vestido.
Tão diverso de um abraço
era o toque dessas mãos.

Como quem acaricia
um gato ou um passarinho,
sorria, com os olhos calmos,
sob o ouro das pestanas.

A voz triste dos violinos
cantava, em meio à névoa:
"Dá graças a Deus que enfim
estás a sós com o amado".

Ana Akhmatova

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11/02/08

OMNIA VINCIT AMOR - 93



«As mulheres não são pacientes com o amor. São pacientes com tudo e de tudo fazem hábitos. Do amor é que não. Daí que muitas delas deixem de ser honestas e se entreguem a uma forma de criação que é principiar do nada coisas efémeras que nunca acabam. Chama-se a isto Quinta-Essência, a região do fogo e do amor.»
Agustina Bessa-Luís

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10/02/08

LEITURAS - 66





Aos 15 anos


"Minha Nossa Senhora, rebentou dentro de mim essa coisa maravilhosa a que chamamos Vida. Aprendi a gostar dos rios e dos pássaros, das moças e dos trovões, rebolei-me em todo o chão do meu Alentejo, comi barro, abracei lama, cicatrizei-me de penhascos. E descobri que o amor nasce todos os dias nas folhas dos aloendros, nas espigas do centeio, debruado de sol e girassóis com montanhas de ternura pelo meio.
Oh, Meus belos companheiros de Melides: Barrinha sabido que já correra Marrocos e Mourarias, roubara carteiras a "camones" e beduínos mas de tudo se desprendia como a fonte se dá em água. E tu, maravilhoso António Rodrigues dos Santos, homem de 15 anos, chefe da casa, que mortos já eram teu pai, tua mãe e teu irmão? E tu, meu Chico Velhinho, bobo da corte, com um sorriso tão dramático e doloroso, que ainda hoje, quando penso em ti, me sinto culpado de todas as insensibilidades do mundo. E tu, meu caro Arménio, complexado filho-de-pai-incógnito, anátema que só uma virgem mas indestrutível solidariedade do nosso clã transformou num homem bom, aberto, camarada?
E tu, e tu e tu, ó tantos amigos, tanta moça amada, tantos velhos cavadores que me ensinaram, sobre poiais frescos das velhas casas, os ângulos da pedra filosofal...
Quinze anos. Quinze anos. Quinze anos. A vida toda despida à minha frente em arremessos de amor, chão, ternura e amizade:
- Foi aos quinze anos que descobri que um homem sozinho não vale nada."

Eduardo Olímpio - Ternura

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09/02/08

PÉROLAS - 126


foto minha



A Pedra


Não quero a Pedra
quero a flor
dentro dela

Yvette Centeno

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08/02/08

ANO VIEIRINO - 3



«Quatro ignorâncias podem concorrer em um amante, que diminuam muito a perfeição e merecimento de seu amor: Ou porque não se conhecesse a si; ou porque não conhecesse a quem amava; ou porque não conhecesse o amor; ou porque não conhecesse o fim onde há-de parar, amando.»

Padre António Vieira, «Sermão do Mandato»,
in Sermões Escolhidos, Lisboa: Editora Ulisseia, 2ª edição, 1984.

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OS MEUS POETAS - 82


foto de eli/tecum



Regresso ao lar


Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!...
Foi há vinte?... Há trinta?... Nem eu sei já quando!...
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!...

Dei a volta ao mundo, dei a volta à vida...
Só achei enganos, decepções, pesar...
Oh, a ingénua alma tão desiludida!...
Minha velha ama, com a voz dorida.
canta-me cantigas de me adormentar!...

Trago de amargura o coração desfeito...
Vê que fundas mágoas no embaciado olhar!
Nunca eu saíra do meu ninho estreito!...
Minha velha ama, que me deste o peito,
canta-me cantigas para me embalar!...

Pôs-me Deus outrora no frouxel do ninho
pedrarias de astros, gemas de luar...
Tudo me roubaram, vê, pelo caminho!...
Minha velha ama, sou um pobrezinho...
Canta-me cantigas de fazer chorar!...

Como antigamente, no regaço amado
(Venho morto, morto!...), deixa-me deitar!
Ai o teu menino como está mudado!
Minha velha ama, como está mudado!
Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

Canta-me cantigas manso, muito manso...
Tristes, muito tristes, como à noite o mar...
Canta-me cantigas para ver se alcanço
que a minha alma durma, tenha paz, descanso,
quando a morte, em breve, ma vier buscar!

Guerra Junqueiro em Os Simples

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07/02/08

DO FALAR POESIA - 77



a poesia nem sempre

a poesia nem sempre
adopta a forma
de um poema


depois de cinquenta anos
a escrever
a poesia
pode apresentar-se
ao poeta
na forma de uma árvore
de um pássaro
que voa
de luz


adopta a forma
de uma boca
refugia-se no silêncio


ou vive no poeta
livre de forma e de conteúdo

Tadeusz Rózewicz
Trad.de Jorge Sousa Braga

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06/02/08

ANO VIEIRINO - 1

[Os grandes comem os pequenos]









(…) A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. (…) Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá: para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-o a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para mortalha o lençol mais velho da casa, come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que cantando o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que também os homens se comem vivos assim como vós. (…) Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem sentenciado, e já está comido.
(…) A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne há dias de carne, e para o peixe dias de peixe, e para as frutas diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem… Parece-vos bem isto, peixes? Representa -se -me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às claras e às escuras, como também fazem os homens. Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como Deus as castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos. Assim foi; mas se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que os comam também a eles. (…)



Padre António Vieira in Sermão de Santo António aos Peixes - pregado em S.Luís do Maranhão em 1654

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05/02/08

ANO VIEIRINO - 0

Completam-se amanhã, dia 6 de Fevereiro, 400 anos sobre a data em que nasceu um dos maiores prosadores lusófonos de sempre - aquele que foi para a nossa prosa o que Camões foi para a poesia. Chamou-se António Vieira, foi padre jesuíta e um lutador por causas que nem sempre venceu: funções diplomáticas difíceis e frequentemente falhadas,luta intransigente a favor de cristãos-novos, judeus, índios e escravos; contra a Inquisição, que o perseguia e teve preso, também.Simultaneamente atento ao seu tempo e profeta de um 5ºImpério, angariou amigos, poderosos ou não, e inimigos poderosíssimos. Nasceu em Lisboa há 400 anos e morreu em Salvador da Bahia em de junho de 1697. No intervalo entre as duas datas, andou cá e lá...Foi «o imperador da língua portuguesa», como lhe chamou Fernando Pessoa.É,pois, com inteira justeza que se comemora o seu 4ºcentenário.
Para mais informações, pode procurar-se em www.anovieirino.com/. Por mim, colocarei (já o fiz em tempos-ver em Ler clássicos 1 e 8) neste blogue alguns excertos de sermões e cartas suas.

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PENSAR - 74


img:kiarostami


A terra é abastada de pastos, e assim como cria o bom, cria o mau. E já ouvi dizer um grande homem que era dado às cousas do outro mundo, falando na povoação desta terra (que ainda que a vedes assim por partes metida a mato, é de pastores em muita maneira povoada) que esta era uma das maravilhas da natureza, de uma terra mesma nasceram duas tão contrárias uma à outra. E que isto não era só nas alimárias, mas nos homens: que não há maus senão onde há os bons, e não há ladrões senão onde há que furtar.


Bernardim Ribeiro

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02/02/08

OS MEUS POETAS - 81



Há-de flutuar uma cidade...

há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentado à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola
no coração. mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade


Al Berto

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01/02/08

LEITURAS - 65



[...]

Você está a sentir-se mal? - perguntou-lhe.Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve um sorriso de piedade.- Pelo contrário - disse, - nunca me senti tão bem. Acabava de dizer isto quando Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em todaa sua amplitude. Amaranta sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar ao lençol para não cair, no momento em que Remedios, a bela, começava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis à mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e com ela se perderam para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar.[...]
Gabriel García Márquez - excerto de Cem anos de solidão (Pub. EA , 1971)

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