30/04/08

«ENSINOU A SENTIR VELADAMENTE»- 25






PAISAGENS DE INVERNO

I.
(A Alberto Osório de Castro)


Ó meu coração, torna para trás.
Onde vais a correr desatinado?
Meus olhos incendidos que o pecado
Queimou! Volvei, longas noites de paz.

Vergam da neve os olmos dos caminhos.
A cinza arrefeceu sobre o brasido.
Noites da serra, o casebre transido...
Cismai, meus olhos, como uns velhinhos.

Extintas primaveras, evocai-as.
– Já vai florir o pomar das macieiras.
Hemos de enfeitar os chapéus de maias. –

Sossegai, esfriai, olhos febris...
– E hemos de ir a cantar nas derradeiras
Ladainhas... Doces vozes senis...

Camilo Pessanha, Clepsydra

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29/04/08

UMA ATITUDE SE IMPÕE - AFRONTAMENTO-11



O Caminho da Liberdade



Invencível serás caso não te empenhes em qualquer pugna da qual de ti não dependa saíres vencedor. (...) Face a um homem entre todos distinguido e honrado, detentor de uma qualquer insígnia de poder ou considerado por esta ou aquela razão, tem-te nas tuas ideias e não descures de o proclamar feliz. Se, na verdade, a substância do bem reside nas decisões que dependem de nós, espaço não há nem para a inveja, nem para o ciúme. Aliás, tu próprio, não ansiarás por ser estratega, benemérito da pátria ou cônsul até: livre é o que tu queres ser. Ora só um caminho há para que alcances esse estado de liberdade - o menosprezo pelas decisões que de nós não dependem.

Epicteto

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28/04/08

PÉROLAS - 132




A rapariga de Vermeer

A rapariga de Vermeer, agora famosa,
olha-me. A pérola olha-me.
Os lábios vermelhos, húmidos
e brilhantes da rapariga de Vermeer.
Rapariga de Vermeer, pérola,
turbante azul: és toda luz
e eu sou feito de sombra.
A luz olha a sombra com altivez,
condescendência, talvez piedade.

Adam Zagajewski
Trad. De Jorge Sousa Braga

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25/04/08

HÁ 34 ANOS ERA ASSIM QUE NOS SENTÍAMOS

[Repito, emocionada, a minha Crónica nº9 de «Notícias do Antigamente»,de 25.04.05 - em nome do direito à memória e à esperança]


...e depois a festa : crónicas contra o esquecimento


Esta é a madrugada que eu esperava
0 dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

[Sophia Mello Breyner Andresen]


O regime começava a cair lentamente, em processo de corrosão interna que começava também a tornar-se notório aos mais atentos - e que a tentativa militar malograda do 16 de Março vinha confirmar. Uma série de acontecimentos prenunciavam a queda - a publicação do livro de Spínola PORTUGAL E O FUTURO e os acontecimentos a nível de altas chefias militares daí decorrentes, mostravam que havia descontentamento e dúvidas a tais níveis - ora tinham sido justamente os militares que, em 28 de Maio de 1926, tinham instaurado uma ditadura que levaria ao poder Salazar e o seu regime de Estado Novo. Lembro-me de em Paris, onde passava férias da Páscoa, ter estado com portugueses exilados - neles era já geral a convicção de que em breve seria possível o tal golpe militar de que se começava a falar, nomeadamente na imprensa estrangeira. E também eles perguntavam «noticias do (meu) país», não apenas ao «vento que passa » das trovas de Manuel Alegre, mas a quem vinha de Portugal - para quando a revolução? Aguardavam ansiosamente o fim do exílio forçado e doloroso.

Em 24 de Abril, à noite, ouvindo, como de costume, o programa Limite, na Rádio, surpreendeu-me ouvir ler a 1ªquadra da canção (proibida pela censura) GRÂNDOLA VILA MORENA, seguida da canção propriamente dita. Surpreendeu-me, mas estava longe de imaginar que essa era a 'senha' do golpe. Dormi normalmente até por volta das 6 horas da manhã, altura em que fui acordada por uma colega que me dava a notícia de que havia uma revolução.

Liguei de imediato a rádio e ouvi com expectativa os comunicados dum tal MOVIMENTO DAS FORÇAS ARMADAS (M.F.A.) que dizia estar em curso uma acção de libertação do nosso povo, procurando destituir o governo que há 48 anos oprimia o país. Não sabíamos, inicialmente, de que militares se tratava: - se de militares democratas, se de 'ultras' militares de extrema-direita que contestavam Marcelo Caetano, por 'brandura'. Da janela do meu quarto, assistia-se a um desfile de viaturas militares em direcção ao sul, a Lisboa.

Creio que nunca se ouviu tanto rádio como nesse dia - estávamos presos dos comunicados, das notícias, de saber o que se seguiria.à noite, no telejornal, veríamos os primeiros rostos da revolução triunfante. E nesse dia os jornais de referência, como o saudoso República, faziam sair os seus jornais com a tarjeta:ESTE NÚMERO NÃO FOI VISADO POR NENHUMA COMISSÃO DE CENSURA.

Fui para a escola tentar dar aulas 'normais' - naturalmente tarefa impossível, e se calhar nem sequer desejada. As autoridades da escola, essas, estavam fechadas no antigo gabinete do Reitor, ouvindo rádio - a ver, também, prudentemente, no que dava...-para se pronunciarem depois. Às 3 da tarde já se sabia: - o poder autoritário, de tipo fascista, tinha sido derrubado; aguardava-se a rendição de Marcelo Caetano, refugiado com os seus ministros no Quartel do Carmo, onde era a sede da fidelíssima Guarda Nacional Republicana. Essa rendição far-se-ia mais tarde, às ordens de Salgueiro Maia, o 1ºherói conhecido do golpe [fora também aluno desta nossa Escola Secundária de Francisco Rodrigues Lobo,de Leiria].


Entretanto, e por essa hora, e com a presença já das autoridades liceais (Reitor e Vice-Reitores, de nomeação governamental), fomos todos para o Ginásio, no 1ºdos muitos Plenários que se seguiriam. Houve algumas palavras do então Reitor, que afirmou que nunca tinha vivido em democracia - e por isso, também ele iria ter muito que aprender. Falaram mais professores, mais ou menos conotados com a até ali oposição democrática - e conhecidos como tal. Lembro-me da palavra de ordem mais aplaudida:- Hoje começa uma nova vida para todos nós - uma vida de liberdade. Há tudo para fazer. Por isso, não há tempo a perder. COMECEMOS DESDE JÁ A TRABALHAR!


E é essa a minha principal memória do dia - o «dia inicial inteiro e limpo » e que depois seria o 'dia da liberdade', de descompressão, de libertação, da festa - que o foi, na verdade - e viria a despoletar idênticos movimentos, na Grécia, em Espanha, no Brasil.


Nunca vi tanta gente contente. Por uns tempos as pessoas foram diferentes: sorriam abertamente umas para as outras, não se insultavam na estrada, davam mais facilmente boleias, exigiam mais justiça, mais fraternidade, mais solidariedade - e o fim da guerra e a liberdade para os povos colonizados. Aprendiam a falar abertamente, a tomar a voz em plenários, em sindicatos, em manifestações. Acreditámos piamente que estávamos a construir um mundo melhor, mais fraterno, mais justo. Empenhámo-nos a sério - acreditámos que era possível e estava a chegar o país da utopia .

Muito errámos depois e em muitas ocasiões. Fomos enganados na nossa boa fé, outras tantas. Mas nunca professores e alunos estiveram tão unidos na sua generosidade, nunca vi juntar-se tanta gente em torno do que consideravam boas causas (mesmo que, mais tarde, viessem a considerá-las não assim tão boas...).

Nem tudo correu bem, é certo. A história far-se-á desapaixonadamente um dia. Mas foi bom poder ver a libertação dos presos políticos, foi bom ter a ilusão de que podíamos reconstruir a História,- foi bom também ver mais tarde o país seguir, após os sobressaltos de 2 anos, uma vida democrática, moderna, europeia, civilizada.
Foi bom estar nas primeiras eleições livres, em 1975, como tinha sido linda a festa do 1º primeiro de maio...em 1974. FOI BOM VER A FESTA. Uma festa de todo um povo que era bom e generoso - e se muitos pecámos durante o chamado Período Revolucionário em Curso, a verdade é que o balanço final é positivo : podemos orgulhar-nos de sermos um país e um povo que soube vencer a 'austera, apagada e vil tristeza' de que já Camões falava, de recuperar direitos de cidadania longamente usurpados, de se erguer, sem complexos, face a uma Europa que finalmente nos aceitava no seu seio, como igual em dignidade e direitos.[...] Uma Europa maior porque mais livre - mesmo se albergando ainda grandes inquietações e,posteriormente,uma guerra terrível na Bósnia e noutras regiões da ex - República da Jugoslávia...
Depois de termos mostrado à Europa como era o mapa do mundo, depois de séculos de 'vil tristeza', erguíamo-nos de novo, encerrando o ciclo do império, sempre atlânticos, recuperando a grandeza [comprometida em Alcácer - Quibir] de não aceitar como fatal a infelicidade, o 'nevoeiro' de que falava Fernando Pessoa - e de podermos voltar a sonhar uma pátria mais justa e solidária.
E foi bom, também, ver nascer os países africanos de expressão portuguesa, que hoje são povos irmãos e não já inimigos.E ver libertar-se de outras ditaduras o Brasil, a Argentina e outros povos de além - mar. Competia - nos continuar o sonho, crescer mais e melhor, e, sobretudo, reparar injustiças, democratizar e desenvolver mais - visto que a missão de descolonizar, bem ou mal, foi feita. Essa é a tarefa dos políticos, é certo, mas é também a de cada um de nós.
.............................................................
E aguardemos agora, em 2008, 34 anos depois, em tempo de desencanto, que uma breve e ténue luzinha, mesmo lá bem no fundo do túnel,nos faça recuperar esses dias de encantamento e de crença no futuro .

Porque, como dizia o poeta resistente francês Paul Eluard

«La nuit n'est jamais complète.
Il y a toujours
puisque je le dis,
Puisque je l'affirme,
Au bout du chagrin, une fenêtre ouverte,
une fenêtre éclairée. »

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24/04/08

DE AMICITIA -73





Velho como as flores
o vinho respira
no meu copo.
Velho como as aves
O tinto que bebo
Com amigos
Que partiram.


Casimiro de Brito –Arte de Bem Morrer
Roma ed.,2007

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23/04/08

O PRAZER DE LER - 78


Img.juan gris

Para adorar o que queimei


Há livros que lemos sentados num banquinho
diante de uma carteira escolar.

Há livros que lemos andando
(e também por causa do formato);

Uns são para as florestas e outros para outros campos,
Et nobiscum rusticantur, diz Cícero.

Alguns há que li na diligência;
Outros, deitado no fundo dos celeiros de feno.

Há os para fazer crer que temos uma alma;
Outros, para desesperá-la.

Há os em que se prova a existência de Deus;
Outros, em que não se consegue fazê-lo.

Há livros que não é possível admitir
senão em bibliotecas particulares.

Há os que receberam elogios
de muitos críticos autorizados.

Alguns há em que só se trata de apicultura,
que certas pessoas acham algo especializados;
noutros fala-se tanto da natureza
que não vale mais a pena passear depois.

Outros há que os homens sensatos desprezam
mas que excitam as criancinhas.

A alguns chamam antologias
e neles incluíram tudo o que de melhor se disse
a propósito de tudo.

Há os que desejariam fazer-nos amar a vida;
outros depois dos quais o autor suicidou-se.

Alguns semeiam o ódio
e colhem o que semearam.

Alguns, quando os lemos, parecem brilhar,
carregados de êxtase, deliciosos de humildade.
Há os que amamos como irmãos
mais puros e que viveram melhor do que nós.

E os há impressos em caracteres extraordinários
e que não compreendemos, mesmo depois de tê-los estudado muito.

Ah! quando teremos queimado todos os livros, Nathanael!

Alguns há que não valem um vintém furado,
outros alcançam preços consideráveis.
Alguns falam de reis e de rainhas
e outros de gente muito pobre.

Alguns há cujas palavras são mais suaves
do que o ruído das folhas ao meio-dia.
Foi um livro que João comeu em Patmos
como um rato; mas eu prefiro as framboesas.
Isso encheu-lhe as entranhas de amargura
e ele teve depois muitas visões.

Ah! quando teremos queimado todos os livros, Nathanael!



André Gide

(no dia mundial do livro de 2008)

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ANO VIEIRINO - 6



[Amar ou Ser Amado?]

Que é o que mais deseja e mais estima o amor: ver-se conhecido ou ver-se pago? É certo que o amor não pode ser pago, sem ser primeiro conhecido; mas pode ser conhecido, sem ser pago. E considerando divididos estes dois termos, não há dúvida que mais estima o amor e melhor lhe está ver-se conhecido que pago. Porque o que o amor mais pretende, é obrigar; o conhecimento obriga, a paga desempenha. Logo muito melhor lhe está ao amor ver-se conhecido que pago; porque o conhecimento aperta as obrigações, a paga e o desempenho desata-as. O conhecimento é satisfação do amor próprio; a paga é satisfação do amor alheio. Na satisfação do que o amor recebe, pode ser o afecto interessado; na satisfação do que comunica, não pode ser senão liberal. Logo, mais deve estimar o amor ter segura no conhecimento a satisfação da sua liberalidade, que ver duvidosa na paga a fidalguia do seu desinteresse. O mais seguro crédito de quem ama, é a confissão da dívida no amado; mas como há-de confessar a dívida, quem a não conhece? Mais lhe importa logo ao amor o conhecimento que a paga; porque a sua maior riqueza é ter sempre individado a quem ama. Quando o amor deixa de ser credor, só então é pobre. Finalmente, ser tão grande o amor que se não possa pagar, é a maior glória de quem ama: se esta grandeza se conhece, é glória manifesta; se não se conhece, fica escurecida, e não é glória. Logo, muito mais estima o amor, e muito mais deseja e muito mais lhe convém a glória de conhecido, que a satisfação de pago.

Padre António Vieira, in "Sermões Escolhidos (Sermão do Mandato)"

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22/04/08

OS MEUS POETAS - 87



Cansou-se a flor já de dar cheiro.
Estava farta:
por que diabo a pusemos na nossa mesa?
E tentou lançar sombra
maior do que no jardim,
e cansou-se quando para lá não olhámos.

Mas eu dei-me conta.


József Attila

(Hungria, 1905-1937)

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21/04/08

O PRAZER DE LER - 77


A intimidade perdida…
Neste princípio de insónia, repenso o ritual da leitura, todas as noites, à cabeceira da cama, quando ele era pequeno, a horas fixas e com gestos imutáveis: era de certo modo como uma oração. O súbito armistício depois da balbúrdia do dia, os reencontros livres de todas as contingências, o momento de silêncio concentrado antes das primeiras palavras da história, a nossa voz que finalmente soa como de facto é, a liturgia dos episódios… Sim, a história lida todas as noites constituía a mais bela função da oração, a mais desinteressada, menos especulativa, a que dizia respeito apenas aos homens: o perdão das ofensas. Não se confessava nenhuma falta, não havia qualquer preocupação em receber uma porção de eternidade, era um momento de comunhão entre nós, a absolvição do texto, um regresso ao único paraíso que tem valor: a intimidade. Sem que o soubéssemos, descobríamos uma das funções essenciais do conto, e mais generalizadamente da arte em geral, que é impor uma trégua no combate entre os homens.O amor ganhava um novo rosto.E era gratuito.

Daniel Pennac - Como um romance

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20/04/08

NOCTURNOS - 51


joan miró, Dog barking at the moon

Olhá-la
como um portal de luz por onde passam os sonhos
e chamar-lhe lua

depois
superar o céu até a noite não doer mais
e resolver o enigma da escada


como se cada degrau fosse feito de tempo
e cada minuto tivesse a forma do desejo


e cair na eternidade como o olhar de um cão


gil t. sousa -poemas2001

Obs.: o Gil pode ser lido também nos seus blogues:
http://canaldepoesia.blogspot.com/ e http://falsolugar.blogspot.com/

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19/04/08

LEITURAS - 75


A vida depois de Deus

Ora eu sou urna pessoa afectuosa, mas custa-me muito mostrá-lo.
Quando era mais novo, costumava preocupar-me muito a ideia de ficar só, de ninguém me amar ou de ser incapaz de amor. À medida que os anos foram passando, as minhas preocupações mudaram. Passei a temer ter-me tornado incapaz de uma relação, de oferecer intimidade. Sentia-me como se o mundo vivesse dentro de uma casa confortável à noite e eu estivesse cá fora, e ninguém me visse por estar cá fora de noite. Mas agora estou dentro da casa e sinto-me precisamente na mesma.
Aqui sozinho, agora, todos os meus medos irrompem, os medos que julguei enterrar para sempre quando me casei: medo da solidão; medo de que estar sempre a apaixonar-me e a desapaixonar-me tornasse mais difícil amar; medo de nunca sentir o verdadeiro amor; medo de que alguém se apaixonasse por mim, ficasse extremamente próximo, a saber tudo de mim, e depois desligasse a ficha; medo de que o amor só fosse importante até certo ponto depois do qual tudo é negociável.
Durante muitos anos, vivi urna vida solitária e achava a vida boa. Mas sabia que se não explorasse a intimidade e partilhasse a intimidade com mais alguém, a vida nunca iria além de certo ponto. Lembro-me de pensar que, se não soubesse o que ia dentro de outra cabeça além da minha, ia explodir.

douglas coupland-a vida depois de deus
trad. telma costa - ed.teorema,1994

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18/04/08

...DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ - 27

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 51


foto de eli


Assinalando o equinócio

Vinham rosas na bruma florescida
rodear no teu nome a sua ausência.
E a si se coroavam, e tingiam
a apenas sombra de sua transparência.

Coroavam-se a si. Ou no teu nome
a mágoa que vestiam madrugava
até que a bruma dissipasse o bosque
e ambos surgissem só lugar de mágoa.

Mágoa não de antes ou de depois. Presente
sempre actual de cada bruma ou rosa,
relativos ou não no espelho ausente.

E ausente só porque, se não repousa,
é nome rodopio que, na mente,
embruma a brisa em que se aviva a rosa.


Fernando Echevarría

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17/04/08

LER OS CLÁSSICOS - 91



[da poesia e da tragédia]

Parece que a poesia tem inteiramente a sua origem em duas causas, ambas naturais. Porque a imitação é natural ao homem desde a infância, e nisto difere dos outros animais, pois que ele é o mais imitador de todos, aprende as primeiras coisas por meio da imitação, e todos se deleitam com as imitações. É prova disto o que acontece a respeito dos artífices, porque nós contemplamos com prazer as imagens mais exactas daqueles mesmos objectos para que olhamos com repugnância; por exemplo, a representação de animais ferocíssimos e de cadáveres. E a razão disto é porque o aprender é coisa que muito apraz não só aos filósofos, mas também igualmente aos demais homens, posto que estes sejam menos instruídos. Por isso se alegram de ver as imagens, pois que, olhando para elas, podem aprender e discorrer o que uma delas é e dizer, por exemplo: isto é tal; porque, se suceder que alguém não tenha visto o original, não recebe então prazer da imitação, mas ou da beleza da obra, ou das cores, ou de outro algum motivo semelhante.
Sendo, pois, própria da nossa natureza a imitação, também o é a harmonia e o ritmo (porque é claro que os metros são parte do ritmo). Os que ao princípio se sentiram com maior inclinação natural para estas coisas, adiantando-se pouco a pouco, deram origem à poesia com obras feitas de improviso. Ora a poesia tomou diversas formas, segundo o diferente natural de cada um; porque os homens que tinham mais gravidade e elevação imitavam as acções boas e a fortuna dos bons; e os que eram de génio humilde imitavam as acções dos maus, escrevendo ao principio vitupérios, assim como os outros compunham hinos e louvores. [...] Falemos agora da tragédia, deduzindo a sua verdadeira definição do que temos dito. É, pois, a tragédia a imitação de uma acção grave e inteira de justa grandeza em estilo suave, mas de várias espécies, de que se serve separadamente nos seus lugares, a qual, não por meio da narração, mas sim pela compaixão e terror, consegue o expurgar-nos de semelhantes paixões. Chamo estilo suave ao que tem ritmo, harmonia e melodia. Chamo servir-se separadamente de cada uma das espécies ao executar algumas coisas somente pelo metro e outras pela melodia. [...] O belo (ou seja animal, ou outra qualquer coisa), sendo composto de algumas partes, não só deve ter estas por boa ordem, mas também deve ter uma certa grandeza não arbitrária; porquanto o belo consiste na grandeza e na ordem e, por isso, nem seria belo um animal muito pequeno, porque a vista, quando se olha para alguma coisa por tempo imperceptível, quase se confunde, nem também muito grande, porque então não se vê ao mesmo tempo aquele todo, e a unidade do ponto de vista escapa aos espectadores, como se houvesse um animal do comprimento de dez mil estádios. Pelo que, assim como tanto nos corpos como nos animais deve haver grandeza e esta deve ser capaz de se compreender bem com a vista, assim também as fábulas devem ter extensão e esta há-de ser fácil de compreender com a memória.

Aristóteles, in Poética

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16/04/08

POETAS MEUS AMIGOS - 78



Vespertino

A tarde cai num silêncio de cansaços
do sul as nuvens chegam
como flâmulas
e sobre nós respiram
leves as folhas
de sobreiros e acácias
que perduram

sobre o muro

esquecido
aberto o livro:

«não conheci o desvario do amor senão quando me esforcei
de todas as maneiras por curar-me dele»

eu amava estes lugares onde as sílabas fulgem a floração
[do corpo

mas as palavras já não têm tal rosto

na tarde que finda
compõem ainda uma gramática
a do silêncio

Soledade Santos
http://nocturnocomgatos.weblog.com.pt/




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15/04/08

DESASSOSSEGOS - 71


Imemorial

Não fui quem sou, quando nasci.
Nem sou quem sou, quando amo.
Nem quando sofro.
Porque coexisto. Porque a angústia
é uma herança.

Só me aproximo de mim mesmo
quando fujo,
atravesso a fronteira,
ou me defendo, ou fico triste.

Ou quando sinto a rosa
secreta e quente da vergonha
subir-me à face.

O mar me bate à porta,
como um grito da origem.
Mas como descobrir
a onda imemorial que me trouxe?

Cassiano Ricardo
in Um dia após o outro,1947

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14/04/08

PÉROLAS - 131


foto de ana assunção

As árvores no parque

A relva
Cada vez mais verde

A tua voz
Ontem

Alberto de Lacerda

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13/04/08

DO FALAR POESIA - 79



«Compreender um poema não é chegar a um pseudo-significado, mas coincidir com seu modo de existir.»

Maurice Blanchot

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12/04/08

OS MEUS POETAS - 86


Irmandade

Sou homem: duro pouco
e é enorme a noite.
Mas olho para cima:
as estrelas escrevem.
Sem entender compreendo:
Também sou escritura
e neste mesmo instante
alguém me soletra.

Octavio Paz
Trad. António Moura

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11/04/08

PEQUIM 2008

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LEITURAS - 71




E foi por esta época
que principiei a sentir-me deus.
Não faças confusão: era sempre, era mais que nunca

aquele mesmo homem alimentado de frutos
e de animais da terra,restituindo ao solo os resíduos dos seus alimentos,sacrificando ao sono a cada revolução dos astros,
inquieto até à loucura
quando lhe faltava por demasiado tempo
a cálida presença do amor.

A minha força,
a minha agilidade física ou mental
eram cuidadosamente mantidas por uma ginástica
toda humana.

Mas que dizer senão que tudo isso era divinamente
vivido?
As ousadas experiências da juventude
tinham acabado,
assim como a sofreguidão de gozar o tempo que passa.

Aos quarenta e quatro anos
sentia-me sem impaciência,
seguro de mim,
tão perfeito
quanto a minha natureza me permitia,
eterno.

E compreende bem que se trata,
neste caso,
de uma concepção do intelecto:
os delírios, se este nome se lhes pode dar,
vieram mais tarde.

Era deus
simplesmente porque era homem.

marguerite yourcenar,memórias de adriano
Excerto transcrito- e assim formatado - de http://canaldepoesia.blogspot.com/

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10/04/08

DE AMICITIA - 72



« Andrò dai miei amici andrò a cena
consolerò così la mia pena »

Patrícia Cavalli

« J’irai chez mes amis j’irai dîner
je consolerai ainsi ma peine »
trad.francesa de Giogio Agamben
«Irei aos meus amigos irei jantar
consolarei assim a minha dor»
trad.A.P

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09/04/08

OMNIA VINCIT AMOR -98



Meu próprio amor que é o teu

O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu


Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.

Hilda Hist

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08/04/08

DESASSOSSEGOS - 70




O mais que o homem verdadeiro procura, em seu conflito com o mundo, é colocar uma precária ordem em sua vida e um certo estilo em sua melancolia, em seu destino, que é, por natureza, despedaçado, triste, falhado, enigmático e trágico. Para isso, o homem tem duas fontes, duas raízes de defesa – o choro e o riso. Mas o choro e o riso verdadeiros, aqueles fincados profundamente e cujo ritmo se alimenta de sangue e de subterrâneo.

Ariano Suassuna – in A pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta.

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07/04/08

UMA ATITUDE SE IMPÕE - AFRONTAMENTO - 10



É preciso avisar toda a gente
Dar notícia, informar, prevenir
Que por cada flor estrangulada
Há milhões de sementes a florir.

É preciso avisar toda a gente
segredar a palavra e a senha
Engrossando a verdade corrente
duma força que nada a detenha.

É preciso avisar toda a gente
Que há fogo no meio da floresta
E que os mortos apontam em frente
O caminho da esperança que resta.

É preciso avisar toda a gente
Transmintindo este morse de dores
É preciso, imperioso e urgente
Mais flores, mais flores, mais flores.

João Apolinário

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06/04/08

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 50



Não-Ode

ao lado da alma: é aí
que o perfume das rosas
é mais vivo
mais intenso


Manuel A.Domingos

in http://meianoitetododia.blogspot.com/

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05/04/08

LEITURAS - 70

nina berberova

[acerca de felicidade]

Muitos dizem que é um estado de espírito, outros dizem que é uma questão de mentalização, de nos satisfazermos com o que temos e a mais não almejar…Acho esta noção castradora daquilo que o conceito pode encerrar, daquilo que pode conter na sua essência…Outros dizem que só bate uma vez à porta e que temos de estar com os sentidos alerta para a abrir e deixá-la entrar…Será a felicidade definível por uma súmula destes conceitos aos quais acrescem mais alguns cuja explanação não caberia nesta reflexão? Não há dúvida que a felicidade é um estado de espírito, mas temos que ter a capacidade de sentir, ser permeáveis a determinados estímulos, e é algo de relativo. O que dá felicidade a mim, pode certamente não dar ao próximo…Está estritamente ligada com a personalidade de cada um…E o que deu felicidade ontem pode já não dar amanhã…sabemos que as nossas motivações evoluem ao longo da existência, umas desaparecem para dar lugar a outras ou pura e simplesmente caem em desuso…Pode também estar associada ao poder combativo de cada ser, à capacidade de acreditar em algo e lutar pela sua prossecução…E não é verdade que a felicidade pode estar num sorriso que tanto queremos vislumbrar, na paisagem que queremos abarcar, nos olhos dos seres que amamos, no toque de quem queremos sentir, nos odores familiares que nos acompanham ao longo de décadas, na história de vida e no significado condensado naquele canto da casa, nos dedos hesitantes da criança que pusemos ao mundo e que precisa da segurança que temos para lhe proporcionar? Será a felicidade eterna prima ou irmã da quimera?Hoje as pessoas dividem o mundo transversalmente: buscam a felicidade e não pensam no bem…A felicidade para mim é a minha harmonia com o mundo de que saí e ao qual voltarei…A felicidade só para mim é demasiado fácil, é alcançável, é temporária e não absoluta. Só a minha harmonia com o mundo é absoluta. Mas o mundo não quer saber de mim!…As pessoas são surdas principalmente a si mesmas, até que chegue para elas aquele “momento de pavor” que provoca uma viragem na sua consciência...

Nina Berberova, O cabo das tormentas

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04/04/08

POETAS MEUS AMIGOS -77




Mantra
Não fiz planos para futuro. Nem por
isso a vida me surpreendeu em
cima do muro. Calei diante do lago
onde palavras são cisnes. Sorri na
esperança de um pássaro azul.
Cometi plenitudes…Agora a noite
já é quase um salto. O Sol queima
aos poucos o hálito do horizonte


E a vastidão é um átomo.

Lau Siqueira, in Texto Sentido
Este amigo tem também o blogue poesia sim -www.lausiqueira.blogger.com.br

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03/04/08

DA EDUCAÇÃO - 39




Pensamentos incompletos

A dignidade do meu casaco

Estou sentado na soleira da escola e vejo partir, para o quadro de disponíveis, para a aposentação compulsiva, para a licença sem vencimento, alguns daqueles que comigo construíram as paredes das escolas e a alma que nelas habita. São os deserdados do sistema, empurrados por uma lógica cheia de racionalidade, prenhe de rigor e capaz de ser economicamente adequada. Estendo, no chão, o meu casaco e ofereço-lhes a dignidade de uma passadeira. Quando o primeiro pé pisou o forro do meu casaco, assim estendido, e vi os olhos magoados de quem partia, fui percorrido por uma dor física, da qual já não me consigo libertar.Transporto esta dor dentro de mim, como um castigo que me foi imposto por uma lógica tão lógica que me coloca a assistir ao desfile dos deserdados. O meu casaco apruma-se, estendido no chão, cheio de dignidade.

Antero Afonso in Correio da Educação nº296

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02/04/08

CAMONIANAS - 42



MOTE


Da alma e de quanto tiver
Quero que me despojeis
Contando que me deixeis
Os olhos para vos ver.

VOLTA

Cousa este corpo não tem
Que já não tenhais rendida:
Depois de tirar-lhe vida,
Tirai-lhe a morte também.
Se mais tenho que perder,
Mais quero que me leveis;
Contanto que me deixeis
Os olhos para vos ver.

Luís de Camões - Rimas

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01/04/08

ESCREVER - 63


"Penso como um génio, escrevo como um autor distinto e falo como uma criança."
Vladimir Nabokov, no prefácio a 'Opiniões Fortes',
Assírio & Alvim, 2005

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