31/08/08

OS MEUS POETAS - 94

Photobucket

[Cada dia nos dê o nosso pão]


Cada dia nos dê o nosso pão
e comê-lo nos abra aquela casa
de inteligência e coração
onde sentar-se é mesa rasa
de ver quantos não estão
sentados nessa casa.
E comer se ilumina, e abre-se portão,
ou qualquer coisa de brasa
entra no movimento e na palavra,
como se cada gesto e cada som
fosse uma leitura que se abra
dentro da história de não haver senão
a de estarmos à mesa da palavra,
transparentes, à luz de se partir o pão.

Fernando Echevarria

Etiquetas:

30/08/08

PÉROLAS - 142



É a música. De algum lado virá, é impossível que não venha do avesso da morte; com esse cheiro a resina deve ter atravessado os lúcidos bosques do verão, acolhido nas suas pausas o ardor das colinas nevadas. É a música. Procura-me. Terna, violenta, leva-me nas suas águas. Fundas. Frescas.

eugénio de andrade - as colinas nevadas

Etiquetas:

29/08/08

POETAS MEUS AMIGOS - 87

É com alegria que anuncio o lançamento, no próximo dia 5 de setembro, pelas 18:30, na Livraria Arquivo, em Leiria, de um novo livro de um poeta meu amigo, de quem há algum tempo publiquei no blogue um poema(ver poetas meus amigos -36).Fica o convite.



Casa de amigos no Alentejo


Uma casa reconstruída

para conjugar o passado e o presente


Dentro lume de chão


Uma oliveira à porta e

meia dúzia de pés de sardinheira


É toda a gramática

da ocupação do espaço

Manuel Silva Terra, O que sobra
Casa do Sul, ed.-Évora,2008 - casadosul.blogspot.com/

Acerca da obra:

O Que Sobra é um livro de poemas. Neste livro, o autor aceita a sua condição de ser errante. Assim, a viagem é o grande livro de aprendizagem que procura: a realidade do mundo e a verdade que se antevê.

Etiquetas: ,

LER OS CLÁSSICOS - 96



[Rijo e continuado sentimento]


Os amores no coração fazem mais rijo e continuado sentimento que outra benquerença, por estas razões:Primeira, por a contrariedade do entender que os contradiz, mostrando de uma parte quanto mal por eles se faz, defendendo que se não faça, e doutra o desejo que muito com eles reina, requerendo com grande afincamento que persevere no que há começado, fazem uma porfia que continuadamente dá grã pena de espírito, afã e cuidado, do que mui amiúde os namorados se queixam, a qual se não pode passar sem rijos sentimentos.Segunda, porque rijo, desordenado e continuado desejo, ciúmes e vanglória fazem no coração grande sentimento. E porquanto estes reinam mais com amores que com outra benquerença, porém fazem maior sentido.Terceira, porque assim como dizem as cousas costumadas não fazerem tanto sentir, por esse fundamento aquelas que se abalam convém que o acrescentem.E pois que os amores nunca dão repouso por fazerem contentar de mui pequeno bem, assim como de uma boa maneira de olhar, gracioso rir, ledo falar, amoroso e favorável jeito, e de tal contrário se assanham, tomam suspeita, caem em tristeza, filhando tão rijo cuidado por uma cousa de nada, como se tocasse a todo seu bom estado, que o não deixa enquanto dura pensar em al livremente, mas como aquele que tem véu posto ante os olhos vê as cousas, dessa guisa ele pensa em todas outras fora do seu fundamento por cima daquele cuidado que lhe faz parecer todas as folganças nada, não havendo aquela que mais deseja.E se a cobrasse, que tristeza nunca sentiria, o que é tão errado pensamento como bem demonstram muitos exemplos, os quais não quer consentir que se creiam, posto que claramente de demonstrem, pensando que nunca semelhante como ele sentiu que o contrário pudesse sentir, o que adiante as mais das vezes se demonstra mui desvairado do que parece.E por aqui se pode bem conhecer, posto que não caia em outro erro, quanto perigo é trazer um tal cuidado assim reinante em ele, que o não deixe pensar em cousa livremente sem haver dele lembramento, e como constrangido cuidar em qualquer outro feito por pesado que seja, para o coração no que tais amores lhe mandam quer embargar seu sentido, desamparando todos os outros por necessários que sejam.E por estas razões convém que traga e faça maiores sentimentos que outra maneira de amar.


Rei D. Duarte -in Leal Conselheiro
encontrado em http://cortenaaldeia.blogspot.com/

Etiquetas: ,

28/08/08

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 57



A rosa vermelha
Semelha
Beleza de moça vaidosa, indiscreta.
As rosas são virgens
Que em doudas vertigens
Palpitam,
Se agitam
E murcham das salas na febre inquieta.

Mas ai! Quem não sonha num trêmulo anseio
Prendê-las no seio

Saudoso o Poeta. [...]

Castro Alves - excerto do poema A Violeta

Etiquetas:

27/08/08

ESCREVER - 70



Biblioteca, Vieira da Silva


Adolescente ainda, as palavras eram sons que me levavam de fulgor em fulgor, de febre em febre: escrevia como olhava o mar, imaginando cidades na margem invisível do horizonte. Escrevia pela ânsia de viver, pela luz em que julgava ir tornar-me. Há muito que essa luz se apagou e que não escrevo assim. Nem já para fingir viver. Foi longo o caminho de aprendizagem, e trago comigo as personagens que ficaram em mim e que fui encontrando nestes livros todos. Vivemos juntos e sonhamos juntos enquanto durmo. Sem elas eu não existia. O que escrevo, em sua maior parte, não me pertence. Pertence-lhes. E hoje escrevo para resistir, para que nenhuma delas morra senão quando eu morrer.
Nuno Dempster

Etiquetas: ,

26/08/08

UMA ATITUDE SE IMPÕE: AFRONTAMENTO - 15



Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo

[das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo

[dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois

[da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e

[ medrosas.

Carlos Drummond de Andrade

Etiquetas:

25/08/08

NOCTURNOS - 57



vesperal

cartas lançadas
o olhar contempla as figuras e o enigma
sem perceber seu nome
e o nome do enigma é vazio

a aranha ainda tece
a esperança vive

mas a esperança é um vestido de sol
na tarde que perdura
e o mundo despe
quando chega a noite

o mundo gira e tritura com seu peso
toda ilusão

adelaide amorim
http://www.inscries.blogspot.com/

Etiquetas: ,

24/08/08

REVIVALISMOS - 19

agora que estamos na época do digital...ainda saberíamos lidar com uma Rodenstock?

Etiquetas:

ESCREVER- 69



[há ou não uma literatura feminina?]

Quando uma mulher escreve um romance protagonizado por uma mulher, todo mundo considera que está falando das mulheres; mas se um homem escreve um romance protagonizado por um homem, todo mundo considera que está falando do género humano. Não tenho nenhum interesse, absolutamente nenhum, de escrever sobre mulheres. Quero escrever sobre a condição humana, mas, por acaso, 51% da humanidade é de sexo feminino, e como eu pertenço a este grupo, a maioria dos meus protagonistas absolutos são mulheres, da mesma maneira que os romancistas geralmente criam personagens principais masculinos. E já é hora de os leitores homens se identificarem com as protagonistas mulheres, da mesma maneira que, durante séculos, nós nos identificamos com os protagonistas masculinos, que eram nossos únicos modelos literários; porque essa permeabilidade, essa flexibilidade do olhar nos tornará a todos mais sábios e mais livres."
Rosa Montero - exc. De A louca da casa

Etiquetas:

23/08/08

CAMONIANAS - 48



Amor é um brando afeito
que Deus no mundo pôs e a Natureza
para aumentar as cousas que criou.
De Amor está sujeito
tudo quanto possui a redondeza;
Nada sem este afeito se gerou.
Por ele conservou
a causa principal o mundo amado,
donde o pai famulento foi deitado.
As cousas ele as ata e as conforma;
com o Mundo, e reforma
a matéria. Quem há que não o veja?
Quanto meu mal deseja, sempre forma.

Luís de Camões, Rimas - excerto da VII Écloga

Etiquetas: ,

22/08/08

LEITURAS - 84




[O que há de novo pelo mundo]


"O GOVERNADOR - Então, Ivan Kusmitch, que pensa agora da situação?

O DIRECTOR DOS CORREIOS - Eu? Eu nada tenho a ver com isso! E o senhor, Anton Antonovitch?

O GOVERNADOR - Eu? Eu também não tenho nada a ver com isso! Oh, não é que eu deva recear... Simplesmente... os burgueses e os negociantes inquietam-me sempre um pouco. Dizem que lhes arranquei a pele, e, no entanto, sabe Deus que, se os, digamos... despojei, foi realmente sem maldade nenhuma. Pergunto a mim mesmo (agarrando o braço do Director dos Correios, e chamando-o de parte), pergunto a mim mesmo se não há até qualquer queixa contra mim. Pois, enfim, porque havia de nos ser enviado um inspector? Escute, Ivan Kusmitch, não poderia o senhor, no interesse de todos... todas as cartas que chegam e partem dos seus correios..., não poderia, compreende... abri-las um bocadinho e dar-lhes uma vista de olhos? Poderíamos assim saber se em alguma delas haveria queixa que... E, caso contrário, tornava a fechá-las; de resto, até se pode remeter uma carta aberta...
O DIRECTOR DOS CORREIOS - Bem sei, bem sei, nesse ponto não é o senhor que me vem ensinar. Tenho-o feito muitas vezes, não tanto por prudência, como por mera curiosidade; sim, gosto sempre muito de saber o que há de novo pelo mundo. Dir-lhe-ei mesmo que é das leituras mais interessantes. Ao lermos certas cartas, sentimos mesmo gozo; ele há cada passagem!... E, quanto a informações, garanto-lhes que valem mais que a Gazeta de Moscovo.



Nicolau Gogol, O inspector

Tradução de João Gaspar Simões.
recolhido em http://last-tapes.blogspot.com/

Etiquetas:

21/08/08

UM COLAR DE PÉROLAS - 141




Sobre a Beleza

Viens-tu du ciel profond ou sors - tu de l'abîme,
ô Beauté?
Baudelaire

A thing of beauty is a joy forever
John Keats
Aimer la beauté, c'est vouloir la lumière
Victor Hugo

The best part of beauty is that which no picture can express
Francis Bacon

O that deceit should dwell/In such a gorgeous palace!
W. Shakespeare

Belo é o que se ama
Safo

O que é belo é sempre querido
Eurípedes

Beauty is no quality in things themselves. It exists merely in the mind which contemplates them
David Hume

in http://leiturapartilhada.blogspot.com/

Etiquetas:

20/08/08

OS MEUS POETAS - 93


img: jardim do campo alegre-porto

Passeio Alegre

Chegaram tarde à minha vida
as palmeiras. Em Marraquexe vi uma
que Ulisses teria comparado
a Nausica, mas só
no jardim do Passeio Alegre
comecei a amá-las. São altas
como os marinheiros de Homero.
Diante do mar desafiam os ventos
vindos do norte e do sul,
do leste e do oeste,
para as dobrar pela cintura.
Invulneráveis — assim nuas.

Eugénio de Andrade

Etiquetas:

19/08/08

DESASSOSSEGOS - 77


Foto de Maria José Amorim

Nada nem nenhum
guarda garante o sono,
senão o medo que vela
à cabeceira.

Noites preenchidas de demónios
e quimeras.

A candeia quase extinta
à míngua de azeite
é que fabrica as sombras.

Depois, pela manhã,
lambo as feridas,
penteio-me como se
tivesse dormido, como se

não fosse nada.

António Manuel Pires Cabral

Etiquetas:

18/08/08

PENSAR - 83



[insónia]

De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.No segundo caso, o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».

Carlos de Oliveira

Etiquetas: ,

17/08/08

«ENSINOU A OBSERVAR EM VERSO» - 9


john_William_Waterhouse - circe

Deslumbramentos

Mylady é perigoso contemplá-la
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

Sem que nisso a desgoste ou desenfade,
Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas,
Eu vejo-a, com real solenidade,
Ir impondo toilettes complicadas!...

Em si tudo me atrai como um tesoiro:
O seu ar pensativo e senhoril,
A sua voz que tem um timbre de oiro
E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina...
E é, na graça distinta do seu porte,
Como a Moda supérflua e feminina,
E tão alta e serena como a Morte!...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha,
Britânica, e fazendo-me assombrar;
Grande dama fatal, sempre sozinha,
E com a firmeza e música no andar!

O sue olhar possui, num jogo ardente,
Um arcanjo e um demónio a iluminá-lo;
Como um florete, fere agudamente,
E afaga como o pêlo dum regalo!

Pois bem! Conserve o gelo por esposo,
E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos,
O modo diplomático e orgulhoso
Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos.

E enfim prossiga altiva como a Fama,
Sem sorrisos, dramática, cortante;
Que eu procuro fundir na minha chama
Seu ermo coração, como a um brilhante.

Mas cuidado, mylady, não se afoite,
Que hão-de acabar os bárbaros reais,
E os povos humilhados, pela noite,
Para a vingança aguçam os punhais.

E um dia, ó flor de Luxo, nas estradas,
Sob o cetim do Azul e as andorinhas,
Eu hei-de ver errar, alucinadas,
E arrastando farrapos - as rainhas!

Cesário Verde

Etiquetas:

16/08/08

O PRAZER DE LER - 86



Todo aquele que abre um livro entra numa nuvem
ou para beber a água de um espelho
ou para se embriagar como um pássaro ingénuo
A sôfrega retina
vai-se tornando felina e inflada
e os seus liames tremem entre o júbilo e agonia
Um livro é redondo como uma serpente enrolada
e formado de fragmentos onde lateja o sangue

[ de um pulso
que já não é de um autor que nunca o foi
e que será sempre o ritmo do que está a nascer
irrigando o nada e os terraços sobre os abismos
Nunca o livro se completa embora o redondo

[ o circunde
e o mova para o seu interior sem nunca o envolver
Jamais a nuvem se dissipa mesmo quando

[ a claridade ofusca
Como se fosse preciso adormecer nela como sobre

[
os ombros do mundo
para acompanhar o fluxo ingenuamente novo
com os delicados diademas de fogo e espuma
O livro ora é de veludo ora de bronze
e os seus traços abrem janelas ou terraços
sobre o corpo latente como um arbusto entre pedras
Se a palavra vibra como um meteoro ou desliza

[ como uma anémona
ou não é mais do que uma estrela de areia
a sua proa sulca o incessante intervalo
entre o ardor de incompletos liames
e a estátua aérea que se eleva à sua frente
e continuamente se forma e se deforma
por não ser nada e ser o alvo puro
de um movimento ingénuo sonâmbulo e incerto.


António Ramos Rosa - in O Poeta na Rua

Etiquetas: ,

15/08/08

RETRATOS DE UM PAÍS QUE JÁ NÃO HÁ - 28

OMNIA VINCIT AMOR - 105



A terra tem túmulos a mais

Mas os teus olhos
Ressuscitam tudo

Tu e eu
Morreremos
De excesso de eternidade

Alberto de Lacerda - da sequência Ariel e a Luz, in Oferenda II, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994

Etiquetas:

14/08/08

POETAS MEUS AMIGOS - 86




Vir do frio. Trazer às pregas da pele as lembranças.
O colo da mãe a alisar a alma.
Aninhar o tempo.

Zef (habitante regular de Pasárgada)
http://www.vozromazeira.blogspot.com/

Etiquetas:

13/08/08

LEITURAS - 84


Creio que a foto (de 2002) não faz inteira justiça ao maravilhamento meu,da Soledade, de Torga ou de Saramago, de quem deixo :
S. LEONARDO DE GALAFURA

Está o viajante cansado de calcorrear esta região de Lamego. Foi à Senhora dos Remédios, subiu as escadarias recordando o episódio do Veloso nos Lusíadas, visitou a cidade, foi a Salzedas e à Ponte de Ucanha, visitou Balsemão, S. Martinho de Mouros, Armamar e S. João de Tarouca. É tempo de partir para a Régua. Passada a ponte, hesita. Voltar à esquerda e seguir para Mesão Frio ou seguir em frente rumo a Vila Real pela estrada de Santa Marta de Penaguião. A paisagem é impressionante em qualquer dos percursos. Porém, ali à direita, junto ao rio, há uma pequena estrada... e o céu azul convida à aventura. O viajante decide-se pelo desconhecido. Hoje vai a Galafura.
Aquele poema de Torga não lhe saía da cabeça. O autor dos Contos da Montanha nasceu ali ao lado e a sua visão telúrica sempre o impressionara. Algo terá este lugar para tanto ter fascinado o poeta.
A estrada é estreita mas de bom piso. Pelas encostas estendendem-se os vinhedos em socalcos. Impossível não aproveitar os poucos espaços livres nas bermas para parar e encher os olhos com a rudeza trabalhada da paisagem. Chegamos a Galafura. A aldeia decepciona o viajante. A estrada sobe para o monte e lá no alto espera-o S. Leonardo.
A primeira sensação é de paz, uma paz que brota da rudeza das pedras e do silêncio das cercanias. Uma pequena capela sem pretensões, árvores em torno, granito...Incrustadas em algumas rochas estão placas com textos de Torga sobre Galafura. Não se vê vivalma. O viajante agradece. Nascido na serra e apreciador destes cimos ornados com pequenas capelas que pululam por toda esta região, nunca entendeu a razão por que muitas pessoas insistem em permanecer no betão e não fazem o esforço de libertarem o espírito e subirem ao monte. Mas hoje não está para grandes divações e, egoisticamente, agradece...
Ao fundo, passada a capela, montes de pedras ornam a esplanada. O viajante aproxima-se e...
" O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta." (Miguel Torga, Diário XII).
Quem melhor do que o poeta poderia descrever este regalo dos sentidos?! Nas suas vagabundagens pelo país, que se põe cada vez mais bonito para o receber após um longo ano de ausência, o viajante revolta-se por vezes com o desleixo quase atávico que o envergonha, pasma-se frequentemente com as potencialidades inexploradas e a variedade policromática da paisagem portuguesa, com aquela casa de granito ou aquele monte alentejano que, à socapa, irrompe na paisagem e lhe transmite o algo que faltava. S. Leonardo de Galafura é a explosão dos sentidos em que ao arquitecto bastou o arado.
Há lugares mágicos em Portugal que teimamos em desconhecer. O viajante promete que deles um dia vos fará crónica. "Só nos é concedida esta vida que temos; e é nela que é preciso procurar o velho paraíso que perdemos."
Se algum dia alguém se ufanar, falando-lhe da sua última visita a Paris ou Londres, não tenha pejo em perguntar-lhe: - E você, já foi a S. Leonardo de Galafura?...
José Saramago -in Viagem a Portugal

Etiquetas:

LER OS CLÁSSICOS - 95



[do jogral Meendinho -trovador]

Sedia-m' eu na ermida de San Simion
e cercaron-mi as ondas, que grandes son:
eu atendend' o meu amigo,
eu atendend' o meu amigo!

Estando na ermida ant' o altar,
[e] cercaron-mi as ondas grandes do mar:
eu atendend' o meu amigo!
eu atendend' o meu amigo!

E cercaron-mi as ondas, que grandes son,
non ei [i] barqueiro, nen remador:
eu atendend' o meu amigo!
eu atendend' o meu amigo!

E cercaron-mi as ondas do alto mar,
non ei [i] barqueiro, nen sei remar:
eu atendend' o meu amigo!
eu atendend' o meu amigo!

Non ei i barqueiro, nen remador,
morrerei fremosa no mar maior:
eu atendend' o meu amigo!
eu atendend' o meu amigo!

Non ei [i] barqueiro, nen sei remar
morrerei fremosa no alto mar:
eu atendend' o meu amigo!
eu atendend' o meu amigo!

Etiquetas:

12/08/08

No 101ºaniversário de Miguel Torga


São Leonardo da Galafura


À proa dum navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade,
Sem pressa de chegar ao seu destino.
Ancorado e feliz no cais humano,
É num antecipado desengano
Que ruma em direcção ao cais divino.


Lá não terá socalcos
Nem vinhedos
Na menina dos olhos deslumbrados;
Doiros desaguados
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.


Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho
É um sorvo a mais de cheiro

A terra e a rosmaninho!


Miguel Torga - in Diário -IX

Etiquetas: ,

ANO VIEIRINO - 10



[A Cegueira da Governação : Vedes ou não vedes?]

Príncipes, Reis, Imperadores, Monarcas do Mundo: vedes a ruína dos vossos Reinos, vedes as aflições e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Príncipes, Eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó Prelados, que estais em seu lugar: vedes as calamidades universais e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes o abuso do costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta da doutrina sã, vedes a condenação e perda de tantas almas, dentro e fora da Cristandade? Ou o vedes ou não o vedes. Se o vedes, como não o remediais, e se o não remediais, como o vedes? Estais cegos. Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra: vedes as obrigações que se descarregam sobre vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas consciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes as potências dos grandes e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores e gemidos de todos? Ou o vedes ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se o não remediais, como o vedes? Estais cegos.
Padre António Vieira,"Sermões"

Etiquetas:

11/08/08

OS MEUS POETAS -92



Canto de primavera

Atrás da cerca havia um limoeiro-era nosso-
Os seus frutos amarelos brilhavam como lanternas,
as flores espalhavam o seu perfume no bairro.
Atrás da cerca havia um limoeiro-era nosso!-
Mas era preciso enfeitar a filha da minha Censura,
que a sua cabeleira fosse perfumada e tivesse...um

[diadema.
Então cortaram os nossos limoeiros
e a primavera tombou-nos dos olhos!


Mahmud Darwich, O Jardim Adormecido e outros poemas, selecção e tradução de Albano Martins,ED. Campo das Letras.

[Coloco o poema em homenagem a este poeta palestiniano falecido em 9 de agosto de 2008]

Etiquetas:

10/08/08

DESASSOSSEGOS - 76



Tarde

Esta é uma tarde completa:
mil cacos de solidão.
Eu conto
eu comparo
eu formo
eu junto.
Estas são as minhas mãos nuas
numa mesa nua e triste.
Tento fixar este instante,
este fragmento de tempo,dissecá-lo
[ completamente.
Tenho os olhos bem abertos.
Sinto o áspero e louco toque
da solidão.
Um sol branco, solitário e enlouquecido
está suspenso
no céu branco.

Vasant Abaji Dahake (Índia)
Tradução de Pedro Amaral, a partir da versão inglesa

Etiquetas:

09/08/08

PENSAR - 82



"Toda a arte é uma revolta contra o destino do homem"

André Malraux, A Condição Humana -1933

Etiquetas:

08/08/08

«ENSINOU A SENTIR VELADAMENTE»- 28


claude monet

Crepuscular

Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos de amor, de ais comprimidos...
Uma ternura esparsa de balidos
Sente-se esmorecer como um perfume.

As madre-silvas murcham nos silvados
E o aroma que exala pelo espaço
Tem delíquios de gozo e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados.

Sentem-se spasmos, agonias de ave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave.

As tuas mãos tão brancas de anemia,
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
É este enlanguecer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.


Camilo Pessanha - Clepsydra

Etiquetas:

07/08/08

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 56



My pretty rose tree



A flower was offered to me;
Such a flower as May never bore.
But I said I've a Pretty Rose-tree.
And I passed the sweet flower o'er.

Then I went to my Pretty Rose-tree:
To tend her by day and by night.
But my Rose turnd away with jealousy:
And her thorns were my only delight.

William Blake

Etiquetas: ,

06/08/08

LEITURAS- 83




Estes pressentimentos exaltados, que Diotima ressuscitava nele em toda a sua frescura original, impunham silêncio a qualquer outra actividade ou agitação(...). é certo que mesmo assim exaltado, o jovem Paul Arnheim comia em qualquer restaurante chique, frequentava, vestido à última moda, a melhor sociedade, e fazia em toda a parte aquilo que tinha a fazer, podia-se, no entanto, afirmar que a distância entre ele próprio e ele próprio era tão grande como entre ele próprio e os seres ou os objectos, que o mundo exterior não terminava junto à sua pele e que o mundo interior não brilhava apenas através da janela da reflexão, mas que esses dois mundos se associavam numa presença e numa ausência indivisas, tão doces, pacíficas e nobres como um sono sem sonhos."

Rober Musil - in "O homem sem qualidades"

Etiquetas:

05/08/08

GULAGS

Morreu Solzhenitsyn

Permanecem a sua obra e memória dos gulags por que passou e retratou e das perseguições que ele, como tantos, sofreu.

E oxalá não surjam (estão a ameaçar ou estão mesmo já a suceder) novos gulags - com a bigbrotherização da nossa vida.Convém estar atentos à invasão da nossa privacidade - ainda que, sempre,sempre, sempre, em nome de «boas» causas...Como cantava Bob Dylan, With God in our side...

Etiquetas:

POETAS MEUS AMIGOS - 85



contar a marca dos dias
(as pequenas horas) como se
o impossível deixasse nódoas
negras no teu corpo

como se a infância fosse a
cidade feliz
(larga e acolhedora) onde deitas
a face na almofada

como se o teu fracasso não se
lesse, nas rugas e no
pó dos ossos que entretêm
a longa espera

miguel b.-innersmile
http://innersmile.livejournal.com/

Etiquetas: ,

04/08/08

OMNIA VINCIT AMOR - 104


[ i ]

pode nem sempre ser assim; e eu digo
que se os teus lábios, que amei, tocarem
os de outro, e os teus dedos fortes e meigos cingirem
o seu coração, como o meu em tempos não muito
[distantes;
se na face de outro os teus suaves cabelos
[repousarem
nesse silêncio que eu sei, ou
nessas palavras sublimes e estremecidas que, dizendo
[ demasiado
ficam desamparadamente diante do espírito vozeando;

se assim for, eu digo se assim for
–tu do meu coração, manda-me um recado;
que eu posso ir junto dele, e tomar as suas mãos,
dizendo,
Aceita toda a felicidade de mim.
Então hei-de voltar a cara, e ouvir um pássaro
cantar terrivelmente longe nas terras perdidas

e. e. cummings - xix poemas
trad. jorge fazenda lourenço

Etiquetas:

03/08/08

O PRAZER DE LER - 85

Os livros encantam-nos até á medula,falam connosco. dão-nos conselhos e unem-se a nós por uma espécie de familiaridade viva e harmoniosa.

Etiquetas:

NOCTURNOS - 56


LUAR
Paisagem

Deve haver lua.
Ela já aparece um pouco
além.
E ei-la suspensa no ar.
É sem dúvida deus
Que com uma prodigiosa
colher de prata
remexe a sopa de estrelas.

Maiakovski
Trad. de Adolfo Luxúria Canibal

Etiquetas: ,

02/08/08

ESCREVER - 68


Ambição


Aprendo o silêncio, buscando falar.
A. Kosmatopolous

Se escrevo, não é porque tenho algo de novo a dizer.
A gente teve sempre o mesmo lote
As mesmas amarguras e as mesmas alegrias
Aquilo a que se chama igualdade de oportunidades.
Se escrevo, é porque me mato a procurar
A mais concisa representação gráfica das lágrimas
.


Kharkianákis
trad. de Manuel Resende in DiVersos 6

Etiquetas:

01/08/08

DE AMICITIA -79



O preço de um verdadeiro amigo...

É sem dúvida um amigo sincero que a fábula nos esconde nas suas sombras, quando nos apresenta uma divindade favorável, a Sabedoria mesma, tomando a seu cuidado guiar Ulisses, virá-lo para a virtude, esquivá-lo a mil perigos, e fazê-lo gozar o céu, até mesmo na sua cólera.Se conhecêssemos bem o preço de um verdadeiro amigo, passaríamos a vida a buscá-lo. Seria o maior dos bens que pediríamos ao Céu; e, quando este atendesse aos nossos votos, crer-nos-íamos tão felizes como se nos houvesse criado com várias almas para valerem sobre nossa fraca e miserável máquina.
Montesquieu in Elogio da Sinceridade
in http://aguarelast.blogspot.com/

Etiquetas: ,

Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com Licença Creative Commons