10/05/09

LEITURAS -110







do filme Manhã Submersa, de Lauro António

Relembro ainda

Foi primeiro na aula de Latim do Padre Lino. Relembro ainda a sua face prismática, o seu falar cerzido, cerrado atrás dos dentes, como um medo invisível, as baionetas apontadas dos seus pequenos olhos azuis. Tratava-se de constituir dois exércitos, duas hostes, dois partidos, enfim. Os dois cabeças de partido, os dois 'generais', eram eleitos por escrutínio secreto. Como é óbvio, deveríamos escolher os dois alunos mais sabedores. E assim, os dois generais deveriam ser o Gaudêncio e o Lourenço. Mas acontecia que qualquer coisa neles - a sua gordura recente, aquele seu ar anegrado e plebeu, o escaroçado dos membros - encarvoava e embrutecia o seu saber. Não assim no Amílcar, que era filho de uma farda da Guarda Nacional Republicana., nem do Adolfo, que era filho de uma loja de comércio. Neles as regras e excepções do Latim tinham um brilho excepcional, eram mais verdadeiras, eram até desculpáveis, se estivessem erradas. A ciência dos outros era maciça e brutal. Mas a destes era leve, fina - mesmo na asneira. Ninguém nos indicou os nomes deles, e todos sabíamos que não eram eles os mais dignos do comando. E de novo falou a voz da nossa submissão. E. esmagados por uma necessidade antiga, rendidos e maravilhados, todos à uma votámos no Amílcar e no Adolfo. Lembro-me de que um voto desgarrado que me coube desatou uma trovoada de risos. Até o Padre Lino mostrou a serrilha breve dos dentes. Só tu, Gaudêncio, não riste. O voto era teu.

Vergílio Ferreira, Manhã Submersa.

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