30/09/09

LER OS CLÁSSICOS - 112



De tantos ardores e apegos imoderados
faço correr fontes dos meus olhos que choram
e nenhuma lágrima minha voltou a subir.
Minha união com ele não dura
e meu olho ferido não dorme.

Rabia’a Al-Dawwya, poetisa e «santa» sufi

Sobre esta poetisa, pode ver http://www.arcadelamor.org/storytellingmonk/p_stories/p_holylife/p_west/
p_Rabia_vigil.htm

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29/09/09

LEITURAS- 123



Um erro

Estou aqui devido a um erro — não nesta cadeia especificamente — mas em todo este mundo terrível, às riscas; um mundo que parece não um mau exemplo de amadorismo, mas que é, na realidade, horror, calamidade, loucura, erro, e vede, o achado raro, intrigante, mata o turista, o gigantesco urso esculpido abate o seu martelo de madeira sobre mim. E no entanto, desde a mais tenra infância, tive sonhos... Nos meus sonhos, o mundo tinha nobreza, espiritualidade; as pessoas que em estado de vigília tanto temia nele apareciam numa refracção fremente, como se estivessem embebidas, envoltas nessa vibração de luz que em tempo de calor confere vida aos próprios contornos dos objectos; as suas vozes, os seus passos, as expressões dos seus olhos e mesmo das suas roupas adquiriam um significado comovente; em termos mais simples, nos meus sonhos o mundo ganhava vida, tornando-se tão captivantemente majestático, livre e etéreo que depois era opressivo respirar a poeira dessa vida decalcada. Mas também há muito que me afiz a ideia de que aquilo a que chamamos sonhos é uma semi-realidade, a promessa de realidade, um vislumbre e um bafo, ou seja, os sonhos contêm, num estado diluído, muito vago, mais realidade genuína do que o nosso decantado estado de vigília que, por sua vez, é um semi-sono, uma modorra maligna na qual penetram, grotescamente deformados, os sons e as imagens do mundo real, fluindo para lá dos limites da consciência, como quando se ouve durante o sono um conto horrorosamente insidioso porque o ramo duma árvore está a arranhar uma vidraça, ou nos vemos a afundar-nos na neve porque o lençol está a escorregar. Mas como receio acordar!

Vladimir Nabokov, in Convite para uma Decapitação

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28/09/09

DO FALAR POESIA - 104


foto de ana assunção

Bati com o pé no deserto
e não nasceu uma fonte…

Toquei numa rocha
e não se cobriu de açucenas…
Beijei uma árvore
e o enforcado não ressuscitou…
Amaldiçoei a paisagem
e não secaram as raízes…


Digam-me lá: para que diabo serve ser poeta?
(Os santos são mais felizes.)


José Gomes Ferreira, in Poesia III

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27/09/09

ESCREVER - 82




"Os gatos são palavras com pêlo. Os gatos, como as palavras, rondam à volta dos humanos sem nunca se deixarem domesticar. É tão difícil meter um gato num cesto quando temos um trem para pegar do que ir à nossa memória caçar a palavra exata e convencê-la a tomar o seu lugar na página em branco. Palavras e gatos pertencem ambos à raça dos inefáveis."

Erik Orsenna, Dois Verões

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26/09/09

UMA ATITUDE SE IMPÕE AFRONTAMENTO - 25


Acordai!
Acordai
acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raíz
Acordai

acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações

Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!

Letra: José Gomes Ferreira ;música:Fernando Lopes Graça (na imagem)

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LEITURAS - 122




«Ficou deitado à escuta, a ouvir a água que gotejava nos bosques. Era a rocha-mãe à flor da terra. O frio e o silêncio. As cinzas do mundo falecido arrastadas para um lado e para o outro no vazio pelos ventos gélidos e efémeros, portadores do tempo. Arrastadas para novos lugares e espalhadas pelo chão e de novo arrastadas. Tudo desligado dos respectivos alicerces, tudo a pairar no ar cinzento, sem qualquer ponto de apoio. Suspenso por uma aragem, trémula e fugaz. Se ao menos o meu coração fosse de pedra.»

Cormac McCarthy, A Estrada
ed.Relógio d'Água

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25/09/09

DE AMICITIA - 90




Amigos, amigos


Para que eu não escreva
o poema da pedra
Deus me deu meus amigos.

E para que eu escreva
o poema da água
algum dele me deixa
quando era mais querido.

Renata Pallottini,in Noite afora

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24/09/09

DA EDUCAÇÃO - 52


r.doisneau

«O querer resolver o problema da educação recorrendo aos especialistas da educação nacional seria o mesmo que, estando num Alto Conselho para os Direitos do Homem, recorrer aos khmers vermelhos para constituir um grupo de especialistas para promover os direitos humanos»[...]

Laurent Lafforgue, parágrafo inicial de um excelente estudo - cit por Guilherme Valente em O«eduquês» nunca existiu – in Expresso de 1.04.06

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23/09/09

DESASSOSSEGOS - 94


clarice lispector

Doçura

Nasci dura, heróica, solitária e em pé. E encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza. A feiura é o meu estandarte de guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual. E desafio a morte. Eu - eu sou a minha própria morte. E ninguém vai mais longe. O que há de bárbaro em mim procura o bárbaro e cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam às chamas da fogueira. Sou uma árvore que arde com duro prazer. Só uma doçura me possui: a conivência com o mundo. Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. É o mínimo que posso fazer de minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifício da noite.

Clarice Lispector - em Água Viva

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22/09/09

DO FALAR POESIA - 103



Apenas um vício


Bufões transvestidos de poetas
burocráticos arrogantes,
pedantes pregoeiros
vós sois os porta - flâmulas
brandindo insígnias desbotadas.
Ser poeta não é um título de glória.
Apenas um vício natural.
Um fardo que por medo
amarramos mal.

Eugenio Montale
(tradução de Ivo Barroso)

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21/09/09

Ele faz anos hoje (leonard cohen)

e o melhor mesmo é ouvi-lo:


http://www.youtube.com/watch?v=r24_T-HOcyg
http://www.youtube.com/watch?v=Ki9xcDs9jRk
http://www.youtube.com/watch?v=vZ61su9H5RU
http://www.youtube.com/watch?v=pGfgMYfdBFc
http://www.youtube.com/watch?v=OsCbA6s763w


Nota:
Embora seja mais conhecido por suas canções, que alcançaram notoriedade tanto em sua voz quanto na de outros intérpretes, Cohen passou a se dedicar à música apenas depois dos 30 anos, já consagrado como autor de romances e livros de poesia.

in wikipedia

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PÉROLAS - 174



Quando no outono
as árvores estavam nuas
uma tarde a nuvem de pássaros
exaustos
poisou sobre os ramos.
Pareciam ter regressado as folhas
baloiçando ao vento.


Tonino Guerra

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20/09/09

POETAS MEUS AMIGOS - 111



Gi

Ainda hoje digo
«Foi a minha primeira namorada.»
Era vizinha, isto é, os pais viviam
na casa geminada com a nossa,
e havia, entre os territórios separados,
respeito por fronteiras e quintais.
Não sei se ela também,
mas eu esperava ávido
o meu primeiro pêlo
que havia de tornar-me adulto.
Enquanto isso, deixava-me espreitar
por sob as saias,
eu deitado no chão,
ela em pé, a fingir que não me via
e que fazia alguma coisa.
A isto se reduzia o namoro.
Palavras, poucas,
e sempre agrestes.
E foi com estranheza
que, numa manhã distante como a vida,
descobri, espreitando,
lá ao cimo, entre as pernas,
uma mancha de sangue nas cuecas.
Nada lhe disse,
mas isso afastou-nos,
ou afastou-me a mim,
que a minha namorada
esteve sempre longe.
Um dia, regressei à Foz do Douro
por umas horas,
queria tornar à nossa infância,
e fui em busca dela, Simenon,
já tinha lido há muito os livros todos
da colecção Vampiro,
mais os outros
que em mim se transmudaram.
A rua parecia mais estreita,
a casa onde moráramos com gosto diferente,
a dela , igual; e tudo, mais pequeno.
Não fui reconhecido.
E disseram-me onde era o seu trabalho,
na Agência de Viagens Marco Polo,
e ainda que casara e tinha dois filhos
que andavam a estudarno IST,
como os meus.
Empregadas domésticas, sabemos,
dizem tudo, só é preciso
ser hábil a puxar por elas,
com o respeito devido às excepções.
O carro percorreu, breve, a distância
até à avenida,
antes demasiado longa
quando ia para a escola a pé.
Chegado,
enfim,
à agência de viagens,
perguntei pela minha namorada.
Surgiu-me um outro rosto, duro e gasto,
um corpo escanzelado,
uns baços olhos verdes, em um ninho
de rugas e gravetos.
«Muito bom dia. Faça o favor»,disse,
com uma voz estranha e devastada.
«Um amigo talvez comum falou-me
na senhora por causa de um programa
de férias na Jamaica.»
Ouvi-a com alívio: «Deve ser engano.»
Não me reconhecera.
Nada restava dela, nem de mim,
e voltei para casa, maldizendo-me
por nunca ter visto antes o meu rosto no espelho.


Nuno Dempster
In a esquerda da vírgula- http://esquerda-da-virgula.blogspot.com/

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19/09/09

OS MEUS POETAS - 120



A felicidade sentava-se todos os dias no peitoril
[da janela.

Tinha feições de menino inconsolável.
Um menino impúbere
ainda sem amor para ninguém,
gostando apenas de demorar as mãos
ou de roçar lentamente o cabelo pelas faces humanas.

E, como menino que era,
achava um grande mistério no seu próprio nome.

Jorge de Sena

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18/09/09

O PRAZER DE LER -100



A Biblioteca

Chegada a noite, volto à casa e entro no meu escritório. Na porta, dispo a roupa quotidiana, cheia de lama e de lodo, e visto trajes reais e solenes; e, vestido assim decentemente, entro nas antigas cortes dos homens antigos, onde, recebido amavelmente por eles, me alimento da comida que é só minha, e para a qual nasci; onde eu não me envergonho de falar com eles e de perguntar-lhes as razões das suas acções. E eles, com a sua bondade, respondem-me. Durante quatro horas não sinto tédio nenhum, esqueço-me de toda a ansiedade, não temo a pobreza, nem a morte me assusta: transfiro para eles todo o meu Ser.

Nicolau Maquiavel in 'Carta a Francesco Vettori'

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17/09/09

PÉROLAS - 173

.

Bernardo Soares.Fernando Pessoa

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O atirador

Viam-no, outra vez, cair de bruços,
baleado.

Mas viam outra vez erguer-se, invulnerável,
assombroso, terrível, abatendo-se
e aprumando-se, o atirador fantástico.

Augusto de Campos

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16/09/09

NOCTURNOS - 74


foto da nasa


Sim, vem um canto na noite.
Não lhe conheço a intenção,
Não sei que palavras são.

É um canto desligado
De tudo que o canto tem.
É algum canto de alguém.

Vem na noite independente
De me dizer bem ou mal.
Vem absurdo e natural.

Já não me lembro que penso.
Oiço; é um canto a pairar
Como o vento sobre o mar.

Oiço, oiço; mas ele cessa...
Tinha que ser, porque foi.
Que mais que a alma lhe dói?

Fernando Pessoa
5 - 9 - 1934
In Poesia 1931-1935 e não datada , Assírio & Alvim, ed.

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15/09/09

OMNIA VINCIT AMOR - 131



Despedida

Entre mi amor y yo han de levantarse
trescientas noches como trescientas paredes
y el mar será una magia entre nosotros.
No habrá sino recuerdos.
¡Oh tardes merecidas por la pena!
Noches esperanzadas de mirarte,
campos de mi camino, firmamento
que estoy viendo y perdiendo....
Definitiva como un mármol
entristecerá tu ausencia otras tardes.

Jorge Luís Borges


Entre o meu amor e mim hão-de erguer-se
Trezentas noites como trezentas paredes
E o mar será uma magia entre nós.
Não haverá senão lembranças.
Oh tardes merecidas pela dor!
Noites com esperança de te olhar
Campos do meu caminho, firmamento
Que estou vendo e estou perdendo…
Definitiva como um mármore
A tua ausência entristecerá outras tardes.

Trad.:?

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14/09/09

OS MEUS POETAS - 119



Ainda

Amei. É incompreensível como o tremor das árvores.
Agora estou extraviado na luz porém sei que amei.
Eu vivia num ser e seu sangue deslizava pelas

[minhas
veias e
a música me envolvia e eu mesmo era música.
Agora,
quem está cego nos meus olhos?
Umas mãos passavam sobre meu rosto e envelheciam

[docemente. Que
foi existir entre cordas e espíritos?

Quem fui nos braços da minha mãe, quem fui no meu

[próprio coração?
É estranho:
somente aprendi a desconhecer e esquecer.

[É estranho:
agora, o amor
habita no esquecimento.


António Gamoneda
trad. de António Cícero

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13/09/09

LEITURAS - 120





[...]

" Para mim o que pode haver de sensível no amor é uma saia branca a sacudir o ar, um laço de cetim que mãos esguias enastram, uma cintura que se verga, uma madeixa perdida que o vento desfez, uma canção ciciada em lábios de ouro e de vinte anos, a flor que a boca de uma mulher trincou...
Não, nem sequer é a formosura que me impressiona. É outra coisa mais vaga - imponderável, translúcida : a gentileza. Sim, e como eu a vou descobrir em tudo, em tudo - a gentileza... Daí uma ânsia estonteada, uma ânsia sexual de possuir vozes, gestos, sorrisos, romãs e cores!..

" Lume doido! Lume doido!... Devastação! Devastação!...
Mas logo serenando:
- A boa gente que aí vai meu querido amigo, nunca teve destas complicações. Vive. Nem pensa... Só eu não deixo de pensar... O meu mundo interior ampliou-se - volveu-se infinito, e hora a hora se excede! É horrível. Ah Lúcio! Tenho medo de soçobrar, de me extinguir no meu mundo interior, de desaparecer na vida, perdido nele...
"... E aí tem assunto para uma das suas novelas: um homem que à força de se concentrar, desaparecesse da vida - imigrado no seu mundo interior...
" Não lhe digo eu? A maldita literatura..."

[...]


Mário de Sá- Carneiro, A confissão de Lúcio

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12/09/09

POETAS MEUS AMIGOS - 110




vem, borboleta,

colorir minha infância

de sonhos leves.



Fred Matos
em "Eu, Meu Outro"Maio/1999

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11/09/09

PARA NÃO ESQUECER


Não esquecer também o golpe de Pinochet (que morreria na cama) contra Salvador Allende, que se suicidou no seu palacio de la Moneda.
São as guerras sujas (se alguma outra o não foi também ),todas with God in our side/versão de Bob Dylan do Gott mit uns hitleriano)
Coisas que marcam os nossos tempos e assim continuarão, suponho.
Às Twin Towers ainda pude subir, um ano antes de serem derrubadas.E já na altura fui submetida a rigorosas medidas de segurança, à entrada.Não adiantaram contra suicidas fanáticos.

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LER CLÁSSICOS - 111




Levad', amigo, que dormides as manhanas frías;
toda-las aves do mundo d'amor dizían.
Leda m'and'eu.

Levad', amigo, que dormide-las frías manhanas;
toda-las aves do mundo d'amor cantavan.
Leda m'and'eu.

Toda-las aves do mundo d'amor dizían;
do meu amor e do voss'en ment'havían.
Leda m'and'eu.

Toda-las aves do mundo d'amor cantavan;
do meu amor e do voss'i enmentavan.
Leda m'and'eu.

Do meu amor e do voss'en ment'havían;
vós lhi tolhestes os ramos en que siían.
Leda m'and'eu.

Do meu amor e do voss'i enmentavan;
vós lhi tolhestes os ramos en que pousavan.
Leda m'and'eu.

Vós lhi tolhestes os ramos en que siían
e lhis secastes as fontes en que bevían.
Leda m'and'eu.

Vós lhi tolhestes os ramos en que pousavan
e lhis secastes as fontes u se banhavan.
Leda m'and'eu.


Nuno Fernandes de Torneol, trovador
in Cancioneiro da Biblioteca Nacional (CBN) e da Vaticana(CV)

Pequeno glossário:

levad': levantai.vos; ementavan: comentavam, conversavam;siian: estavam pousadas;tolhestes: cortastes;u:onde

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10/09/09

OMNIA VINCIT AMOR - 130





OPUS 133

Escreveu-me cartas. Enviou-me
uma roldana de ferro
daquelas que se usam para tirar
água dos poços. Enrolou-lhe um poema
em vez da corda que tem de
suster o balde. Podes falar -
-me de ti: quando estou cansado
eu sou um bom ouvinte.

João Miguel Fernandes Jorge, Não é certo este dizer.
Lisboa, Presença 1997

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09/09/09

PÉROLAS - 172



Despimos a armadura
e a viseira diurna;
a linguagem resvala
onde as coisas se apuram.

Carlos Nejar

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08/09/09

«uma atitude se impõe:afrontamento» - 24


cadernos afrontamento - anos 60


STAND UP

Get up, stand up
Stand up for your rights
Get up, stand up
Don't give up the fight.

Bob Marley
recolhido em modus vivendi - http://amata.anaroque.com/

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07/09/09

«VIVA O POVO BRASILEIRO!».OU UMA OUTRA CANÇÃO DE EXÍLIO

Em dia em que se comemora a independência do Brasil







Canção do Exílio

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite -
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá."

Gonçalves Dias - na época «exilado» em Coimbra, para seus estudos.

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CANÇÃO DO EXÍLIO





Eternidade

Junto a ti esplende a Vida.
tudo ganha sentido: o mar, o bosque
e nós.
num instante, a Eternidade


Gonçalo B,de Sousa,in Canção do Exílio.
ed. Temas originais

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O PRAZER DE LER - 99






Ler o mundo


Tudo é leitura. Tudo é decifração. Ou não. Ou não, porque nem sempre deciframos os sinais à nossa frente. Ainda agora os jornais estão repetindo, a propósito das recentes eleições, "que é preciso entender o recado das urnas". Ou seja: as urnas falam, emitem mensagens. O sambista dizia que "as rosas não falam, as rosas apenas exalam o perfume que roubam de ti". Perfumes falam. E as urnas exalaram um cheiro estranho. O presidente diz que seu partido precisa tomar banho de "cheiro de povo". E enquanto repousava nesses feriados e tomava banho em nossas águas, ele tirou várias fotos com cheiro de povo.

Paixão de ler. Ler a paixão.
Como ler a paixão se a paixão é quem nos lê? Sim, a paixão é quando nossos inconscientes pergaminhos sofrem um desletrado terremoto. Na paixão somos lidos à nossa revelia .[...]

Ler é uma forma de escrever com mão alheia. Minha vida daria um romance? Daria, se bem contado. Mas bem escrevê-lo são artes da narração. Mas só escreve bem, quem ao escrever sobre si mesmo, lê o mundo também.

Excertos de um artigo de Affonso Romano de Sant’Ana

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06/09/09

CAMONIANAS - 57


POETAS CANTAM CAMÕES

Camonocórdia num cais de Lisboa

A rocha de cristal, Camões. Nós outros,
Irisações de sol, pobre poeira.
Língua que foste de uns e foste de outros,
Língua de continentes, marinheira,
Língua de Brancos, Negros e ainda outros,
Que bom haver quem como nós te queira!

Pintores, músicos e artistas outros
Entendidos serão na terra inteira,
Léguas e léguas de países outros.
Poetas, não. A Língua é prisioneira.
A voz com que cantamos, uns e outros,
Será sempre aos de além voz estrangeira.

Filhos do burgo ocidental, nós outros,
Fiéis a tanto afã, tanta canseira,
Ao bem da fama como a tantos outros
Sabemos renunciar de alma fagueira:
Em paga deste amor, maior que os outros,
Baste o poder cantar de tal maneira.

Ribeiro do Couto (em Longe, Livros do Brasil, 1961)

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05/09/09

LEITURAS - 119




Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames". Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem. O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilómetros de Argel.Tomo o autocarro das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao meu patrão e, com uma razão destas, ele não mos podia recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: "A culpa não é minha". Não respondeu. Pensei então que não devia ter dito estas palavras. A verdade é que eu não tinha nada que me desculpar. Ele é que tinha de me dar os pêsames. Mas com certeza o fará, depois de amanhã, quando me vir de luto. Por agora, é um pouco como se a mãe não tivesse morrido. Depois do enterro, pelo contrário, será um caso arrumado e tudo passará a revestir-se de um ar mais oficial. Tomei o autocarro às duas horas. Estava muito calor. Como de costume, almocei no restaurante do Celeste. Estavam todos com muita pena de mim e o Celeste disse-me: "Mãe, há só uma". Quando saí, acompanharam-me à porta. Estava um bocado atordoado e tive que ir a casa do Manuel, para lhe pedir emprestados um fumo e uma gravata preta. O Manuel perdeu o tio, há meia dúzia de meses.Tive de correr para não perder o autocarro. Esta pressa, esta correria e, talvez, também os solavancos, o cheiro da gasolina, a luminosidade da estrada e do céu, tudo isto contribuiu para que eu adormecesse no caminho.

Albert Camus, início de O Estrangeiro, (1949)-ed. Livros do Brasil
Tradução: António Quadros

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04/09/09

NOCTURNOS - 73





Os astros em torno da bela lua
escondem seu aspecto cintilante
quando na sua plenitude ela ilumina
a terra.

Safo
(trad. de Frederico Lourenço)


Ver também:- le voyage dans la lune-Méliès,1902 em http://www.youtube.com/watch?v=vZV-t3KzTpw

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03/09/09

OS MEUS POETAS - 118


Rafael, Heraclito,
de A escola de Atenas


Fragmento de Heráclito

Todos os dias são iguais? o grego
e o menino que fui
sempre o souberam.

Ele o pensava, eu o vivia,
amargo.

O sol
cegava, nos telhados.
Mas o menino de ontem,
hoje, cantava.

Alberto da Costa e Silva

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02/09/09

OMNIA VINCIT AMOR - 129


[De Lou para Rilke]
………….
Não é apenas algo de precioso que dois seres se reconheçam, é essencial que se encontrem no bom momento e celebrem em conjunto profundas e silenciosas festas que os fundam nos seus desejos, de modo a poderem estar unidos perante as tempestades. Quantos seres não terão falhado o seu encontro, por não terem tido tempo de se acostumarem um ao outro! Antes de terem o direito de ser infelizes em conjunto, é necessário que tenham sido felizes juntos e que tenham em comum alguma recordação sagrada que mantenha um sorriso semelhante nos seus lábios e uma semelhante nostalgia nas suas almas, (…)

Carta de 8 de set. de 1897


Lou Andréas Salomé,Correspondência amorosa
ed. Relógio d'Água -trad. Manuel Alberto

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01/09/09

PENSAR - 101



Fronteira


Repara: tu és apenas um a olhar para o mundo inteiro. Repara: o mundo inteiro olha para ti. E se todo o mundo cabe nos teus dois pequenos olhos, nunca tu caberás nos olhos infinitos do mundo. Porque há algo de ti que o mundo nunca verá, um algo só teu, indecifrável provavelmente até para ti próprio. E esse algo é, em parte, o que tu vês do mundo. O mundo não se pode ver a si próprio em ti.

Henrique Fialho
http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/

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