31/10/09

PÉROLAS - 178



Ocorrência

Aí o homem sério entrou e disse: bom dia
Aí o outro homem sério respondeu: bom dia
Aí a mulher séria respondeu: bom dia
Aí a menininha no chão respondeu: bom dia
Aí todos riram de uma vez
Menos as duas cadeiras, a mesa, o jarro, as flores,
[as paredes, o relógio, a lâmpada, o retrato,
[os livros, o mata-borrão, os sapatos,
[ as gravatas, as camisas, os lenços

Ferreira Gullar, Dentro da Noite Veloz / Poema Sujo

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30/10/09

PENSAR - 105




[Eça jornalista]

"Ordinariamente todos os ministros são inteligentes, escrevem bem, discursam com cortesia e pura dicção, vão a faustosas inaugurações e são excelentes convivas. Porém, são nulos a resolver crises. Não têm a austeridade, nem a concepção, nem o instinto político, nem a experiência que faz o Estadista. É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política de acaso, política de compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?"

Eça de Queirós - in "O distrito de Évora" (1867)

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29/10/09

POETAS MEUS AMIGOS - 114


van gogh -vinha

Vinhas

Trazias nas mãos o essencial : a flor do lume a pedra
[ rubra
o canto outonal na folha verde no provável fruto
o vento ligeiro zoava na brisa um véu de chuva
ainda entretinhas as palavras com a música do verão.

Era outono o fruto rente à haste
colhido numa sílaba de água a dizer boca

A festa de um dia cheio do marulhar dos pinheiros
as casas dispersas no longe fugiam soltas

José Ribeiro Marto
em http://vaandando.blogspot.com

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28/10/09

INDIGNAÇÃO - de Philip Roth



Sou indefectível leitora de Philip Roth. Acabei de ler há poucos dias o seu último livro - INDIGNAÇÂO - e gostei muito. Prende-nos desde a 1ª à última página ...
Sobre o livro se diz em contra-capa:

«INDIGNAÇÃO , o vigésimo sétimo livro de Phiilp Roth. conta a host+oria da educação do jovem Marcus Messner nas circunstancias assustadoras e nas obstruções anómalas que a vida acarreta. É uma história de inexperiência, loucura, resistência intelectual, descoberta sexual, coragem e erro contada com toda a energia criativa e todo o engenho de que Roth é possuidor. É simultaneamente uma ruptura inesperada com as narrativas obsidiantes da velhice e suas experiências que são os seus livros mais recentes e um poderoso aditamento às investigações do autor sobre o impacto da história da América* na vida do indivíduo venerável.»

*desta vez o momento da Guerra da Coreia (anos cinquenta)

Publ,Dom Quixote,Lisboa, setembro de 2009

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DESASSOSSEGOS - 96




[Partir o mar como se fosse um espelho]

"Acordar de noite e lutar contra o mar. Impor, sobrepor, a minha voz à sua. Acima do seu canto o meu grito, mais alto que a sua música a minha raiva, o meu choro, a minha discordância. Atirar pedras, facas, contra o mar. Fechar contra ele todas as portas e janelas. Contra o seu infinito a minha finitude. Partir o mar como se fosse um espelho."

Teolinda Gersão
, em Paisagem com mulher e mar ao fundo

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27/10/09

«ENSINOU A SENTIR VELADAMENTE» - 38



No claustro de Celas


Eis quanto resta do idílio acabado,
– Primavera que durou um momento...
Como vão longe as manhãs do convento!
– Do alegre conventinho abandonado...

Tudo acabou... Anémonas, hidrângeas,
Silindras – flores tão nossas amigas!
No claustro agora viçam as ortigas,
Rojam-se cobras pelas velhas lájeas.

Sobre a inscrição do teu nome delido!
– Que os meus olhos mal podem soletrar,
Cansados ... E o aroma fenecido

Que se evola do teu nome vulgar!
Enobreceu-o a quietação do olvido,
Ó doce, ingénua, inscrição tumular.

Camilo Pessanha,Clepsydra

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26/10/09

ESCREVER - 83


[Eu desestruturo a linguagem ?]

Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem?
Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar debaixo de mim. Tira o lugar em que estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam do grilo. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras, pois, que desestruturaram a linguagem. E não eu.

Manoel de Barros

In Ensaios Fotográficos
Editora Record
Rio de Janeiro - S.Paulo

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25/10/09

POEMAS COM ROSAS DENTRO -75



Fim

We are like roses that have never
bothered to
bloom when we should have bloomed
and
it is as if
the sun has become disgusted
with
waiting



Charles Bukowski



Fim

Somos como rosas que nunca
desabrocharam
quando deviam ter
desabrochado e
é como se
o sol ficasse desgostoso
com
esperar
trad.Amélia Pais

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24/10/09

OMNIA VINCIT AMOR -133


foto de Maria Costa

Mas, seja como for, o que faz um amor sem trajecto?

– Transforma-se noutra coisa, noutra coisa pesada ou acutilante que se traz cá dentro e se embrulha com a nossa própria matéria até deixar de doer.

Iris Murdoch, A Severed Head
«roubado» a http://chelseahotel.multiply.com/reviews/item/23

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23/10/09

LEITURAS - 126



De A condição Humana - excertos


«Tchen recordou-se de Gisors: "À beira da morte, uma tal paixão aspira transmitir-se...". De súbito, compreendeu. Suan também compreendia:- Tu queres fazer do terrorismo uma espécie de religião?A exaltação de Tchen tornava-se maior. Todas as palavras eram vazias, absurdas, impotentes, para exprimir o que queria deles.- Não uma religião. O sentido da vida. A... posse completa de si próprio. Total. Absoluta. A única. Saber. Não procurar, constantemente, ideias e deveres. Há uma hora que já não sinto coisa alguma de que pesava sobre mim. Estão a ouvir? Nada. Agitava-o uma tal exaltação que já não procurava convencê-los, senão falando-lhes de si:- Estou de posse de mim próprio. Mas nem uma ameaça, nem uma angústia, como sempre. Dominado, apertado, como esta mão aperta a outra (apertava-a com toda a força). Ainda não basta, como...Apanhou do chão um dos bocados de vidro da lanterna quebrada. (...) Com um gesto, enterrou-o na coxa. A sua voz entrecortada estava penetrada de uma certeza selvagem, mas parecia muito mais dominar a sua exaltação do que ser dominado por ela. Nada louco. Os outros dois mal o viam já e, contudo, ele enchia o compartimento. (...)- Pelos nossos, nada podes fazer de melhor que decidir-te a morrer. Nenhum homem pode ser tão eficaz como aquele que assim escolheu.»
«-... Não acha que é de uma estupidez característica da espécie humana que um homem que só tem uma vida possa perdê-la por uma ideia?- É muito raro que um homem possa suportar, como hei-de dizer, a sua condição de homem. Pensou numa das ideias de Kyo: tudo aquilo porque os homens aceitam deixar-se matar, para além do interesse, tende mais ou menos confusamente a justificar essa condição, fundamentando-a na dignidade: cristianismo para o escravo, nação para o cidadão, comunismo para o operário. (...)- É sempre preciso intoxicarmo-nos: este país com o ópio, o Islão com o haxixe, o Ocidente com a mulher... Talvez o amor seja sobretudo o meio que o ocidental emprega para se libertar da sua condição de homem...»

André Malraux- in A Condição Humana

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22/10/09

visitas - obrigada a todos!

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LER OS CLÁSSICOS - 114




Soneto 43

Meus olhos vêem melhor se os vou fechando.
Viram coisas de dia e foi em vão,
mas quando durmo, em sonhos te fitando,
são escura luz que luz na escuridão.
Tu cuja sombra faz a sombra clara,
como em forma de sombras assombravas
ledo o claro dia em luz mais rara,
se em sombra a olhos sem visão brilhavas!
Que bênção a meus olhos fora feita
vendo-te à viva luz do dia bem,
se tua sombra em trevas imperfeita
a olhos sem visão no sono vem!
Vejo os dias quais noites não te vendo,
e as noites dias claros sonhos tendo.

Shakespeare -In "Os sonetos de Shakespeare ",
Bertrand Editora, Lisboa, 2002
Tradução de Vasco Graça Moura.

O soneto, no original, pode ser ouvido em http://www.youtube.com/watch?v=F02yclv_TnY

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21/10/09

PÉROLAS - 177


alcobaça - foto de António Barreto

Crente é pouco sê-te Deus
e para o nada que é tudo
inventa caminhos teus.

Agostinho da Silva

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O PRAZER DE LER - 101



A leitora

A leitora abre espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas
da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,

branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.


António Ramos Rosa, “A leitora”

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20/10/09

POETAS MEUS AMIGOS - 113

Criação





Sôbolos rios que vão...

Quando não havia quase nada na terra e muito
[nevoeiro no céu, Deus viu
que tinha tristeza nos olhos e
disse:
haja mais luz,
e as flores nasceram e as cores .

Que lindo,
disse Deus,
e recolheu-se nos aposentos.

No dia seguinte, abertas as janelas, Deus pensou

[na maneira como as flores
deviam espalhar as sementes,
e disse:
cada flor tenha uma pétala borboleta,
e os jardins encheram-se de crianças.

Vou ficar aqui,
disse Deus,
e pôs escritos nos vidros.

As crianças não deram conta de nada.
Andaram aos saltos em terra mole e loira
como papinhas de aveia, nuns sítios,
e mais morena nos de alguma sombra.

Tinham salpicos nas pernas e sardas nas bochechas.
Os cabelos iam arranjando as cores da luz.

Mas os pés de Deus abriam crateras e iam arrastados,
[ a sujar as cores do chão.

Parou para descansar, pensou e disse:
que a água vá por caminhos seus
e deixe bocados de terra firme.

Apareceram rios grandes, ribeiros e arroios,
margens seguras por salgueiros, meruges

[ e outras ervas.

E Deus meditou muito.


Passava uma aragem fina, de som de harpas e liras.
Deus pensou muito, nas árvores e naquela espécie
[ de música.
Ficou triste outra vez,
e tirou os escritos das vidraças.

Zef (Zeferino)
In http://www.vozromazeira.blogspot.com/

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19/10/09

NOCTURNOS - 76



[noite]

Que a noite íntima desoculte
o infinito apartado dos olhares.
E que se soltem as notas breves
de um quarteto de cordas a passar
sob o quarto adormecido
audível apenas por quem vigia
a implosão das cidades contra o medo
e permanece imperecível
como um silencioso
rochedo.

Libelua – in http://www.mgrande.com/weblog/index.php/serenalua

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18/10/09

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 74



siendo que es la rosa
¿quíén consiente su corte?
¿qué señal terrible
hay en su muerte?
corazón
te he arrojado a los vientos
tu desolación sin gritos
la guarde conmigo


Carlos Alberto Roldan

escreve em ar.groups.yahoo.com/group/utopoesia/

se é a rosa
quem permite o seu corte?
que sinal terrível
há na sua morte?
coração,
lancei-te aos ventos
a tua desolação sem gritos
guardei-a comigo
.

Trad. de Amélia Pais

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17/10/09

OS MEUS POETAS -122

[isto não se explica nem se inventa ]

Cantarolar pela rua Assobiar
de mãos nos bolsos como quem tem dez anos ou cinquenta
Ter aberto um jornal que não se lê
Interromper sem razão uma conversa
Voltar ou não voltar e afinal voltar
Contagiar desta alegria toda até aqui submersa
os que não sabem nada disto ou disto riem
e só de ver sorrir assim também sorriem
confusamente sem saber porquê

isto é estar vivo é bom e não se explica
nem inventa


Mário Dionísio - in Poesia incompleta

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16/10/09

DE AMICITIA - 91



O amigo

Não voltará-o que dele me ficou
como no inverno entre cortinas
de chuva um tímido fio de sol:
ilumina mas não aquece as mãos.

Eugénio de Andrade

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15/10/09

DESASSOSSEGOS - 95



O dia deu em chuvoso

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.

Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um [elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é [elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afectos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos. Fernando Pessoa

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14/10/09

PENSAR -104



Autenticidade e originalidade

Nada é original. Apropria-te de tudo o que te enche de inspiração ou estimula a tua imaginação. Devora sem distinção filmes velhos e filmes novos, músicas, livros, quadros, fotografias, poemas, sonhos, conversas ouvidas por acaso, arquitetura, sinaléctica urbana, árvores, nuvens, movimentos de água, sombras e luz. Rouba apenas as coisas que falem diretamente ao teu coração. Se agires assim, a tua criação (tal como o teu fruto) será autêntica. A autenticidade é inestimável; a originalidade uma quimera. E não tentes dissimular o que pediste emprestado – reivindica-o se for teu desejo. Dê por onde der, lembra-te sempre do que disse Jean-Luc Godard: “O importante não é onde se apanha as coisas – é até onde se as leva”.

Jim Jarmusch, cineasta
Encontrado em
http://palavraguda.wordpress.com/

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13/10/09

LER OS CLÁSSICOS -113





Abaix’esta serra
verei minha terra.

Ó montes erguidos
deixai-vos cair,
deixai-vos sumir
e ser destruídos,
pois males sentidos
me dam tanta guerra
por ver minha terra.

Ribeiras do mar,
que tendes mudanças,
as minhas lembranças
deixai-as passar.
Deixai-mas tornar
dar novas da terra
que dá tanta guerra.

Cancioneiro Geral ( 1516 )

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12/10/09

PÉROLAS - 176


foto de ana assunção

Lovely
(excerto)


I think that I shall never see
A poem lovely as a tree.

Joyce Kilmer

tão belo

Creio que nunca verei
Um poema tão belo como uma árvore.

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11/10/09

POETAS MEUS AMIGOS - 112



da Baviera

nem o cansaço da viagem
e a tempestade no mar
conseguiriam tornar mais leve seu passado
nunca aceitou conselhos
e por uma questão de acabamento
era contrário a todos os ardis
: preferia a violência dos ventos e
diluiu sua história em vidas falsas
foi passageiro desapercebido de trens navios
décadas
e instalou seus bigodes amarelos em sessões de
[cinema
no bairro do começo
mais tarde o kinoplex oitavo piso
imaginando esquecer do que falavam
e a cada distração lembrando
vívidos
os rasantes sobre o telhado em casa de seus pais
e as bombas que detonaram sua infância
para longe do rio e dos vagares
no quintal displicente da Baviera

diante da prateleira dos poemas
imaginava viver numa ilha grega
e num terraço avaliado em sete livros desaparecidos
durante a inquisição
arquitetava planos e viagens
dentro de sua casa de sobrado
sempre a esperar mais do gato e das janelas
do que podiam lhe dar
acumulando visões vozes de antes da guerra
fumaça e pesadelos
noites que nem a madrugada abria
entre monges escribas
caligrafias e iluminuras inutilidades
e poeira
ou páginas flutuando sobre a água
sempre entre as cenas de algum filme
a que assistia distraído na tv
esteve em praga e lisboa
margens do arno
de onde rememorava colombo sem a esquadra
em sua avenida amena antes do almoço
durante os últimos anos do sobrado
de onde podia ver um outro rio

Adelaide Amorim
http://inscries.blogspot.com

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10/10/09

LEITURAS - 125



(...)

O homem que assim se aproxima, vago entre as cordas de chuva, é o meu avô. Vem cansado, o velho. Arrasta consigo setenta anos de vida difícil, de privações, de ignorância. E no entanto é um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável. Fala tão pouco que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende algo como uma luz de aviso. Tem uma maneira estranha de olhar para longe, mesmo que esse longe seja apenas a parede que tem na frente. A sua cara parece ter sido talhada a enxó, fixa mas expressiva, e os olhos, pequenos e agudos, brilham de vez em quando como se alguma coisa em que estivesse a pensar tivesse sido definitivamente compreendida. É um homem como tantos outros nesta terra, neste mundo, talvez um Einstein esmagado sob uma montanha de impossíveis, um filósofo, um grande escritor analfabeto. Alguma coisa seria que não pôde ser nunca. Recordo aquelas noites mornas de Verão, quando dormíamos debaixo da figueira grande, ouço-o falar da vida que teve, da Estrada de Santiago que sobre as nossas cabeças resplandecia, do gado que criava, das histórias e lendas da sua infância distante. Adormecíamos tarde, bem enrolados nas mantas por causa do frio da madrugada. Mas a imagem que não me larga nesta hora de melancolia é a do velho que avança sob a chuva, obstinado, silencioso, como quem cumpre um destino que nada poderá modificar. A não ser a morte. Este velho, que quase toco com a mão, não sabe como irá morrer. Ainda não sabe que poucos dias antes do seu último dia terá o pressentimento que o fim chegou, e irá de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer. Porque terá chegado a grande sombra, enquanto a memória não o ressuscitar no caminho alagado ou sob o côncavo do céu e a eterna interrogação dos astros.

José Saramago in As Pequenas Memórias

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09/10/09

PENSAR - 103



Each has his past shut in him like the leaves of a book
known to him by heart; and his friends can only
read the title.

Virginia Woolf

Cada um de nós tem um passado dentro de si como folhas de um livro que conhece de cor e de que os seus amigos apenas conseguem ler o título.

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08/10/09

«UMA ATITUDE SE IMPÕE:AFRONTAMENTO » - 26




Pranto pelo dia de hoje


Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que não podem sequer ser bem descritas.

Sophia de Mello Breyner Andresen - Livro Sexto

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07/10/09

POEMAS COM ROSAS DENTRO - 73



Tempo para as rosas

Haverá um tempo
em que não subirás as escadas
com a ânsia de chegar ao topo.
Nem terás o primeiro lugar
nas cancelas para receber as rosas
e não ouvirás o clamor do olhar -
lobo faminto que devora.

Haverá outros tempos
quando contarás passo a passo
len-ta-men-te.
Dominarás o olhar e, sem recebê-las, olharás
[as rosas.
Haverá então eternidade no teu interior
Para provar o doce sabor do tempo finito.

Sem pressa, estarás no topo
E beberás os segredos
Escondidos enquanto corrias.

Mary Castilho
In http://passaropoesia.blogspot.com/

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06/10/09

LEITURAS - 124



O homem que amava caixas

Era uma vez um homem. O homem tinha um filho. O filho amava o homem. E o homem amava caixas.Caixas grandes, caixas redondas, caixas pequenas, caixa altas, todos os tipos de caixas! O homem tinha dificuldade em dizer ao filho que o amava; então, com suas caixas, ele começou a construir coisas para seu filho. Ele era perito em fazer castelos e seus aviões sempre voavam... a não ser, claro, que chovesse. As caixas apareciam de repente, quando os amigos chegavam, e, nessas caixas, eles brincavam... e brincavam.

A maioria das pessoas achava que o homem era muito estranho. Os velhos apontavam para ele. As velhas olhavam zangadas para ele. Seus vizinhos riam dele pelas costas. Mas, nada disso preocupava o homem. Por que ele sabia que haviam encontrado uma maneira especial de compartilharem o amor de um pelo outro.

Stephen Michael King “O Homem que Amava Caixas”
Encontrei esta história em

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05/10/09

OS MEUS POETAS - 121



Envelhecemos, ele a ramagem e eu a fonte,
Ele um pouco de sol e eu a profundidade,
Ele a morte, mas eu a ciência de viver.
Deixava que na sombra o tempo nos mostrasse,
Com riso acolhedor, o seu rosto de fauno.
Gostava que soprasse o vento que dá sombra.
E morrer fosse só, na fonte muito escura,
A água funda agitar, bebida pelas heras,
Amava, estava em pé, no meu sonho sem fim.

Yves Bonnefoy

Tradução de Cláudio Veiga

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04/10/09

NO DIA MUNDIAL DOS ANIMAIS



Pardalzinho

O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!


Manuel Bandeira

Nota: Este é também o dia do seu patrono:S.Francisco de Assis, poeta

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OMNIA VINCIT AMOR - 132



Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo
traz o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Corre em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo do meu ardente pensamento.
Onde estará o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E eu peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Ó amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

Herberto Hélder , in "O Amor em Visita"
Lembrado em Http://pt.netlog.com/Ares_Lusitani/blog/blogid=1850804

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03/10/09

NOCTURNOS - 75



É noite

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!


Carlos Drummond de Andrade

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02/10/09

PÉROLAS - 175



Tenho tristezas como toda a gente.
E como toda a gente quero alegria.
Mas hoje sou dum céu que tem gaivotas,
leve o diabo essa morte dia a dia.

Eugénio de Andrade

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01/10/09

PENSAR -102





Horizontes de Eternidade


A morte não é um acontecimento da vida. A morte não pode ser vivida. Caso se compreenda por eternidade não uma duração temporal infinita, mas a intemporalidade, quem vive no presente é quem vive eternamente. A nossa vida é tanto mais sem fim quanto mais o nosso campo de visão não tem limites.

Ludwig Wittgenstein, 'Tratado Lógico-Filosófico'

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