25/04/10

FOI BONITA A FESTA,PÁ !*


2 cravos

A minha revolução

Ele há coisas que uma criança tem sérias dificuldades em compreender. Uma delas é perceber que não convém muito cantar nos transportes públicos as cantigas revolucionárias que o avô lhe ensina. As crianças não percebem nada de ditaduras caducas. Pelo menos eu não percebia.Em 25 de Abril de 1974 eu tinha quatro anos e um caso agudo de parotidite. O nome clínico faz a coisa parecer muito mais grave do que era na realidade – afinal o que eu tinha era só papeira. Não se guardam grandes memórias dessa idade, mas há coisas que recordo por entre algumas neblinas. Lembro-me de ter um mostrengo de um inchaço no pescoço, e da minha irmã não parar de gozar comigo. Lembro-me de ter acordado cedo e de ver o meu pai sentado na cama, debruçado sobre um pequeno rádio a pilhas. Lembro-me dele perguntar se alguém sabia do meu avô. Lembro-me dos meus pais me terem levado ao hospital, a Lisboa, e da janela de trás do Renault 10 ver por todo o lado soldados de armas na mão. Lembro-me do meu pai buzinar e acenar-lhes com dois dedos levantados em “V”. Lembro-me dos meus pais rirem muito um para o outro. Felizes.Em minha casa, até àquele dia, “política” tinha sido uma palavra feia, que evocava memórias dolorosas aos meus pais e à minha avó. O culpado era o meu avô, que teimava em desafiar o regime, cismando em conhecer-lhe as cadeias e os interrogadores da PIDE. A política, fazia-a ele às escondidas, tal qual como em casa me ensinava cantigas que um miúdo de quatro anos provavelmente não deveria aprender – hinos revolucionários e canções que falavam de Liberdade. Coisas que eu não imaginava o que fossem, mas que o meu avô sonhava um dia poder viver.Em minha casa, o 25 de Abril de 1974 foi, acima de tudo, a revolução do meu avô. António Emídio, um homem que sempre desprezou a mediocridade, viu derrocar um regime medíocre e bolorento. É verdade que só tinha quatro anos, mas mesmo sem perceber muito bem, nem como nem porquê, comecei naquele dia a olhar para o meu avô como quem olha para um herói de livros de quadradinhos. Faz hoje 30 anos que o vejo assim.
*ver/ouvir Chico Buarque em http://www.youtube.com/watch?v=PsJpeR2K-is

E é ainda bonito recordar esses dias de esperança de há 36 anos - agora, em tempo de regressada «austera, apagada e vil tristeza»...A crónica do depois,a fazer-se, será a do progressivo desencanto e perda da alegria desse dia.

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