25/05/10

LEITURAS - 141



por Hannah Hua- 8 anos

E então, eu vi, eu vi abrir-se à nossa frente o dom da revelação. Que eram, pois, todas as nossas con­versas, a nossa alegria de taças e cigarros, diante daquela evidência? Tudo o que era verdadeiro e inextinguível, tudo quanto se realizava em grandeza e plenitude, tudo quanto era pureza e interrogação, perfeito e sem excesso, começava e acabava ali, entre as mãos indefesas de uma criança. Mas tão forte era o peso disso tudo, tão necessário que nada disso se perdesse, que as mãos de Cristina se estorciam na distância das teclas, as pernas na distância dos pedais e toda a sua face gentil, até agora impessoal e só de infância, se gravava de arrepio à passagem do mis­tério. Toca, Cristina. Eu ouço. Bach, Beethoven, Mozart, Chopin. Estou de lado, ao pé de ti, sigo-te no rosto a minha própria emoção. Apertas ligeira­mente a boca, pões uma rugazinha na testa, estreme­ces brevemente a cabeleira loura com o teu laço vermelho. E de ver assim presente a uma inocência o mundo do prodígio e da grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o mundo nas mãos e que alguma coisa, no entanto, a transcendia, abusava dela como de uma vítima, angustiava-me quase até às lágrimas. Toca uma vez ainda, Cristina. Agora,só para mim. Eu te escuto, aqui, entre os brados deste vento de Inverno. Chopin, Nocturno nº20. Ouço, ouço. As palmeiras balançam no teu jardim, a noite veste-se de estrelas, adormece na planície. Donde este lamento, esta súplica? Amargura de sempre, Cris­tina, tu sabe - la. Biliões e biliões de homens pelo espaço dos milénios e tu só, presente, a memória disso tudo e a dizê-la...


Vergílio Ferreira, em Aparição

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