07/09/11

LEITURAS - 171


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Enterrei hoje minha mulher - porque lhe chamo minha mulher? Enterrei-a eu próprio no fundo do quintal, debaixo da velha figueira. Levá-Ia para o cemitério, e como? Fica longe. Ela pedira-mo uma vez, inesperadamente, acordando-me a meio da noite. Queria que a enterrasse junto ao muro que dá para o caminho, porque se vê daí a casa dela. Habituara-se a olhar para aquele sítio depois que ficou só. E pensava: «Verei dali a janela do meu quarto.» Mas teria de transportá-Ia para lá. Não tenho forças e cai neve. A quantos estamos? É Inverno, Dezembro, talvez, ou Janeiro. Tiro a neve com uma pá, traço o rectàngulo e cavo. Dois cães assomam à porta do quintal, chupados de ódio e de fome. Ainda há cães pela aldeia? Babam-se e uivam sinistramente. Tomo uma pedra. disparo-a contra um, desaparecem ambos a ganir. E de novo o silêncio cresce a toda a volta, desde a montanha que fico a olhar até me doerem os olhos. Olho-a sempre, interrogo-a. Quando estou cansado de cavar, enxugo o suor e olho:.a ainda. Um diálogo ficou suspenso entre nós ambos, desde quando? - desde a infância talvez, ou talvez desde mais longe. Um diálogo interrompido com tudo o que aconteceu e que é necessário liquidar, saldar de uma vez. Estou só, horrorosamente só, ó Deus, e como sofro. Toda a solidão do mundo entrou dentro de mim. E no entanto, este orgulho triste, inchando - sou o Homem! Do desastre universal, ergo-me enorme e tremendo. Eu. Dois picos solitários levantam-se-me adiante, lá longe, trémulos no silêncio. 
Entre eles e a aldeia há um vazio escavado na montanha. donde sobem as sombras e a neblina. Pela manhã a névoa infiltra-se pelos desfiladeiros,[...]

Vergílio Ferreira, Alegria Breve

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